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"TERRA DE NINGUÉM"
Volume reúne 101 textos de temáticas diversas escritos pelo psicanalista em sua coluna na Folha
Calligaris apresenta seu mosaico de crônicas
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA
Um preconceito arraigado nos
garante que coletâneas de
artigos publicados em jornais ou
revistas nunca cheguem a formar
um livro de verdade. Uma obra
autêntica tem de ser concebida,
inteira e orgânica, do começo ao
fim, sem as concessões temáticas
e/ou estilísticas normalmente exigidas pelo público de periódicos
não especializados. De certa forma, o contato do texto com o jornal e, através dele, com o cotidiano, meio que o sujaria, subtrairia
da sua pureza erudita, negando-lhe o distanciamento exigido por
uma abordagem desapaixonadamente objetiva.
Todas essas objeções se aplicam
a "Terra de Ninguém", a seleção,
feita por Arthur Nestrovski , de
101 entre as crônicas escritas desde fins de 1999 por Contardo Calligaris para a Folha. O livro não
se desdobra segundo um plano
que o antecede, não tem unidade
temática e mistura não apenas os
assuntos mais díspares, como
também os trata freqüentemente,
ao sabor do momento, com ferramentas heterogêneas. E, ainda assim, é difícil contestar sua unidade e o fato de que o conjunto se revela maior do que a soma das partes. Por quê?
Bom, a coerência geral advém,
antes de mais nada, de uma outra
coerência mais profunda, a do
próprio autor. Pois, talvez sem
que aqueles que o liam no jornal
se apercebessem disso, cada crônica que ele lhes oferecia era um
ladrilho adicional de um mosaico
ou painel cujo intuito, mais do
que o de apresentar uma visão sistemática do mundo, consiste em,
pelo próprio exemplo, aguçar o
olhar, mostrando que este se aplica tanto a fenômenos políticos como aos pessoais, tanto aos artísticos quanto à multiplicidade de
"faits divers".
Falando seja de um crime perpetrado em São Paulo ou de um
filme do Holocausto, seja sobre a
diminuição da libido de homens
casados ou sobre a autobiografia
de Hillary Clinton, o que Calligaris faz é, sobretudo, partir (como
ele indica na introdução) do concreto, só que não tanto para chegar a alguma abstração a respeito
do comportamento humano, da
estética, da política, da criminalidade, como para retornar a cada
qual desses objetos aparentemente banais, mas agora revalorizados por terem sido iluminados de
um modo diferente, contrapostos
a outros semelhantes e dessemelhantes, ou situados num contexto capaz de englobá-los.
Trocando em miúdos, o autor
retoma a arte clássica do ensaio,
palavra que significa "tentativa",
isto é, a desistência de antemão de
alcançar uma grande verdade definitiva. Os ensaios, ao contrário
do tratado, não requerem credenciais específicas e, em princípio, a
desespecialização de quem os escreva, seu amadorismo (termo
que vem, obviamente, do verbo
"amar") e sua propensão ao heterogêneo são as características que
podem torná-los instigantes.
Aqui se encontraria talvez o
maior obstáculo à liberdade de
Calligaris, o ensaísta, a saber, Calligaris, o psicanalista.
Não é novidade que muitos de
seus colegas profissionais gostam
de aplicar os preceitos da disciplina em questão ao que quer que
observem e, como quase todos
vêem na psicanálise uma máquina de gerar respostas, estas se revelam normalmente previsíveis.
O autor, por seu turno, realiza a
operação inversa, e o pouco de
psicanálise que transparece em
seus escritos lhe serve antes como
um entre vários possíveis repertórios sistemáticos de perguntas.
Daí a adequação do título, pois as
respostas, uma vez dadas, passam
a pertencer a todos, enquanto as
perguntas, que poderiam ter sido
feitas por qualquer um, não são
propriedade de pessoa nenhuma.
Mas "Terra de Ninguém" (nome provavelmente inspirado pelo
livro "Extraterritorial", de George
Steiner) tampouco remete a uma
idéia de neutralidade. Seus ecos
bélicos, ao evocarem o terreno
que separa dois Exércitos antagônicos, lembram-nos, primeiro, de
que há uma guerra de verdade lá
fora, uma guerra que, por sua vez,
coincide com uma batalha de
idéias, opiniões, visões de mundo
etc., e, segundo, que, por ser onde
se cruzam os projéteis disparados
de cada lado, o espaço que Calligaris elegeu para si é igualmente o
mais perigoso.
TERRA DE NINGUÉM. Autor: Contardo
Calligaris. Editora: Publifolha. Quanto: R$
49 (424 págs.).
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