São Paulo, sábado, 27 de março de 2004

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"TERRA DE NINGUÉM"

Volume reúne 101 textos de temáticas diversas escritos pelo psicanalista em sua coluna na Folha

Calligaris apresenta seu mosaico de crônicas

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA

Um preconceito arraigado nos garante que coletâneas de artigos publicados em jornais ou revistas nunca cheguem a formar um livro de verdade. Uma obra autêntica tem de ser concebida, inteira e orgânica, do começo ao fim, sem as concessões temáticas e/ou estilísticas normalmente exigidas pelo público de periódicos não especializados. De certa forma, o contato do texto com o jornal e, através dele, com o cotidiano, meio que o sujaria, subtrairia da sua pureza erudita, negando-lhe o distanciamento exigido por uma abordagem desapaixonadamente objetiva.
Todas essas objeções se aplicam a "Terra de Ninguém", a seleção, feita por Arthur Nestrovski , de 101 entre as crônicas escritas desde fins de 1999 por Contardo Calligaris para a Folha. O livro não se desdobra segundo um plano que o antecede, não tem unidade temática e mistura não apenas os assuntos mais díspares, como também os trata freqüentemente, ao sabor do momento, com ferramentas heterogêneas. E, ainda assim, é difícil contestar sua unidade e o fato de que o conjunto se revela maior do que a soma das partes. Por quê?
Bom, a coerência geral advém, antes de mais nada, de uma outra coerência mais profunda, a do próprio autor. Pois, talvez sem que aqueles que o liam no jornal se apercebessem disso, cada crônica que ele lhes oferecia era um ladrilho adicional de um mosaico ou painel cujo intuito, mais do que o de apresentar uma visão sistemática do mundo, consiste em, pelo próprio exemplo, aguçar o olhar, mostrando que este se aplica tanto a fenômenos políticos como aos pessoais, tanto aos artísticos quanto à multiplicidade de "faits divers".
Falando seja de um crime perpetrado em São Paulo ou de um filme do Holocausto, seja sobre a diminuição da libido de homens casados ou sobre a autobiografia de Hillary Clinton, o que Calligaris faz é, sobretudo, partir (como ele indica na introdução) do concreto, só que não tanto para chegar a alguma abstração a respeito do comportamento humano, da estética, da política, da criminalidade, como para retornar a cada qual desses objetos aparentemente banais, mas agora revalorizados por terem sido iluminados de um modo diferente, contrapostos a outros semelhantes e dessemelhantes, ou situados num contexto capaz de englobá-los.
Trocando em miúdos, o autor retoma a arte clássica do ensaio, palavra que significa "tentativa", isto é, a desistência de antemão de alcançar uma grande verdade definitiva. Os ensaios, ao contrário do tratado, não requerem credenciais específicas e, em princípio, a desespecialização de quem os escreva, seu amadorismo (termo que vem, obviamente, do verbo "amar") e sua propensão ao heterogêneo são as características que podem torná-los instigantes. Aqui se encontraria talvez o maior obstáculo à liberdade de Calligaris, o ensaísta, a saber, Calligaris, o psicanalista.
Não é novidade que muitos de seus colegas profissionais gostam de aplicar os preceitos da disciplina em questão ao que quer que observem e, como quase todos vêem na psicanálise uma máquina de gerar respostas, estas se revelam normalmente previsíveis.
O autor, por seu turno, realiza a operação inversa, e o pouco de psicanálise que transparece em seus escritos lhe serve antes como um entre vários possíveis repertórios sistemáticos de perguntas. Daí a adequação do título, pois as respostas, uma vez dadas, passam a pertencer a todos, enquanto as perguntas, que poderiam ter sido feitas por qualquer um, não são propriedade de pessoa nenhuma.
Mas "Terra de Ninguém" (nome provavelmente inspirado pelo livro "Extraterritorial", de George Steiner) tampouco remete a uma idéia de neutralidade. Seus ecos bélicos, ao evocarem o terreno que separa dois Exércitos antagônicos, lembram-nos, primeiro, de que há uma guerra de verdade lá fora, uma guerra que, por sua vez, coincide com uma batalha de idéias, opiniões, visões de mundo etc., e, segundo, que, por ser onde se cruzam os projéteis disparados de cada lado, o espaço que Calligaris elegeu para si é igualmente o mais perigoso.


TERRA DE NINGUÉM. Autor: Contardo Calligaris. Editora: Publifolha. Quanto: R$ 49 (424 págs.).


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