São Paulo, sábado, 27 de março de 2010

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TRECHO

Os olhos da criança abriam, para se desviar de novo, apontando planetas e estrelas, a noite para além da noite. Falei de genes e neurónios, expliquei degenerescências abrindo os olhos para que me entendesse. De cabeça baixa confessei impotência, revelei a morte inevitável.
Percorri livros, recorri a sábios. Passei noites em claro, dependurado no berço, olhando a vida em marcha-ré. Éramos amigos, eu e cigano. Ombro a ombro como soldados ou companheiros. Fazíamos festas à menina. Um de cada vez. Nada mais restava.
Um dia morreu. Certidão de óbito, diagnóstico certeiro. Tocou o bipe no código de urgência. O cigano tinha voltado e clamava vingança. Na sala onde se recebiam famílias morava um piano. Saltavam teclas e cordas do instrumento esventrado por murros e raiva.

Extraído da crônica "O Cigano", do livro "Sinto Muito", de Nuno Lobo Antunes
* Foi mantida a grafia original do livro



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