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BERNARDO CARVALHO
A perfeição do imperfeito
Em agosto de 1939, o escritor
polonês Witold Gombrowicz
(1904-1969) desembarcou em
Buenos Aires. Vinha de navio,
numa viagem promocional. Não
lhe passava pela cabeça que ficaria ali por mais de 20 anos, embora também não fosse preciso ser
vidente para imaginar o futuro
do seu país àquela altura. Dez
dias depois de desembarcar, os
nazistas invadiram a Polônia,
dando início à Segunda Guerra. E
Gombrowicz se viu forçado ao
exílio. Só voltaria à Europa em
1963, mas não à Polônia comunista, preferindo se instalar em
Berlim e depois na França.
Por ocasião do centenário de
nascimento do autor de "Ferdydurke" (1938) e "A Pornografia"
(1960), seu "Diário Argentino"
ganhou nova edição em espanhol
(Adriana Hidalgo Editora), simultânea a uma pequena exposição em Buenos Aires. O livro é
uma seleção do diário (que foi
publicado em três volumes, com
mais de mil páginas), reunindo
apenas os trechos que dizem respeito à experiência do exílio, mas
que são de especial interesse para
culturas periféricas, de colonização européia, como a Argentina e
o Brasil, constantemente assombradas pelo debate em torno de
uma identidade nacional.
A visão ao mesmo tempo exterior e marginal de Gombrowicz é
uma bênção iconoclasta. O escritor era obcecado pela idéia de juventude, de imaturidade, de imperfeição e de inacabado como
contraponto às identidades já fixas e estabelecidas da maturidade. Para Gombrowicz, a juventude era a vida, a possibilidade da
mudança e do movimento, enquanto a maturidade era a morte, um estágio já acabado, petrificado pelas convenções. O jovem é
o homem incompleto -e por isso
mais verdadeiro: "Tudo o que sei
sobre a minha natureza e sobre a
do universo é incompleto: é como
se não soubesse nada".
A idealização da juventude, entretanto, carrega um paradoxo
que Gombrowicz, procurando a
perfeição na imperfeição, não ignorava. A juventude só pode ser
percebida do exterior, por quem
já não é jovem. A juventude não
tem consciência de si. Nela, o escritor polonês vai buscar o espelho de um tempo perdido, a imagem de si mesmo antes de se consolidar numa identidade, antes
de se tornar o que é, mas também
a sedução do ilícito, a força do
que é "inferior", de uma sexualidade inconsciente, perversa, à flor
da pele.
O exílio forçado num país periférico do Novo Mundo veio a calhar. Havia farto material à volta
para essa reflexão erótica e filosófica, sobretudo na oposição entre
as peregrinações noturnas que o
escritor fazia pelos bas-fonds do
bairro do Retiro, na região do
porto, entre jovens marinheiros, e
as recepções de ricos europeizados
e intelectuais.
Para o europeu forçado ao exílio pela guerra, traumatizado e
desiludido com o fracasso da sua
civilização, a barbárie era facilmente associada às convenções
da velha cultura que não soube
impedi-la. No Velho Mundo, a luta era contra a morte. No Novo
Mundo, lutava-se pelo crescimento. A diferença era fundamental.
Para Gombrowicz, a cultura era
um modo de dominação da juventude. Daí para a idealização
da realidade inacabada de uma
cultura jovem como a argentina
era um passo. Para o exilado que
não falava espanhol, confrontado
com uma elite que o ignorava e
rejeitava, a nata da intelectualidade local estava cega para a vida
à sua volta e perdia tempo a cultuar a cultura européia.
Incomodava-o o intelectual que
se levava muito a sério, com sua
incapacidade de rir de si. Numa
passagem divertidíssima de
"Trans-Atlântico" (1952), cuja
ação decorre em Buenos Aires,
Gombrowicz narra o encontro
com um "gran escritor" (em clara
alusão a Borges). Durante uma
recepção, os dois travam uma disputa intelectual. Inconformado
com a evidente superioridade do
"maestro" local, um compatriota
do escritor polonês o incita a revidar cada frase do argentino: "Vai!
Morde ele!". Mas Gombrowicz diz
que não é cachorro e sai com o rabo entre as pernas.
A vantagem de cultuar o inacabado é justamente o poder de rir
da própria imperfeição. E Gombrowicz de fato transformou o
episódio numa cena hilariante.
Achava ridículo que a principal
controvérsia dos intelectuais argentinos se arrastasse havia décadas entre os que defendiam uma
erudição internacionalista e os
partidários de um nacionalismo
essencialista. Ficava espantado
com a necessidade de artistas e escritores buscarem e exprimirem
uma identidade nacional.
A ação do artista é individual:
"Queres saber quem és? Não perguntes. Atua. A ação te definirá e
determinará. (...) O argentino autêntico nascerá quando se esquecer de que é argentino e sobretudo
de de que quer ser argentino; a literatura argentina nascerá quando os escritores se esquecerem da
Argentina. Vão se separar da Europa quando a Europa deixar de
ser um problema para eles (...).
Sua essência se revelará quando
deixarem de buscá-la".
Para o escritor de um país aniquilado pela guerra, exilado numa terra estrangeira que não o
reconhece, desiludido com a idéia
de nação e com a civilização que
a inventou, nada mais contraditório do que um artista que procura escapar ao convencional e,
querendo ser verdadeiro, vai se
agarrar a uma convenção tão
traiçoeira e ilusória quanto a de
uma "identidade nacional".
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