São Paulo, terça-feira, 27 de abril de 2004

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BERNARDO CARVALHO

A perfeição do imperfeito

Em agosto de 1939, o escritor polonês Witold Gombrowicz (1904-1969) desembarcou em Buenos Aires. Vinha de navio, numa viagem promocional. Não lhe passava pela cabeça que ficaria ali por mais de 20 anos, embora também não fosse preciso ser vidente para imaginar o futuro do seu país àquela altura. Dez dias depois de desembarcar, os nazistas invadiram a Polônia, dando início à Segunda Guerra. E Gombrowicz se viu forçado ao exílio. Só voltaria à Europa em 1963, mas não à Polônia comunista, preferindo se instalar em Berlim e depois na França.
Por ocasião do centenário de nascimento do autor de "Ferdydurke" (1938) e "A Pornografia" (1960), seu "Diário Argentino" ganhou nova edição em espanhol (Adriana Hidalgo Editora), simultânea a uma pequena exposição em Buenos Aires. O livro é uma seleção do diário (que foi publicado em três volumes, com mais de mil páginas), reunindo apenas os trechos que dizem respeito à experiência do exílio, mas que são de especial interesse para culturas periféricas, de colonização européia, como a Argentina e o Brasil, constantemente assombradas pelo debate em torno de uma identidade nacional.
A visão ao mesmo tempo exterior e marginal de Gombrowicz é uma bênção iconoclasta. O escritor era obcecado pela idéia de juventude, de imaturidade, de imperfeição e de inacabado como contraponto às identidades já fixas e estabelecidas da maturidade. Para Gombrowicz, a juventude era a vida, a possibilidade da mudança e do movimento, enquanto a maturidade era a morte, um estágio já acabado, petrificado pelas convenções. O jovem é o homem incompleto -e por isso mais verdadeiro: "Tudo o que sei sobre a minha natureza e sobre a do universo é incompleto: é como se não soubesse nada".
A idealização da juventude, entretanto, carrega um paradoxo que Gombrowicz, procurando a perfeição na imperfeição, não ignorava. A juventude só pode ser percebida do exterior, por quem já não é jovem. A juventude não tem consciência de si. Nela, o escritor polonês vai buscar o espelho de um tempo perdido, a imagem de si mesmo antes de se consolidar numa identidade, antes de se tornar o que é, mas também a sedução do ilícito, a força do que é "inferior", de uma sexualidade inconsciente, perversa, à flor da pele.
O exílio forçado num país periférico do Novo Mundo veio a calhar. Havia farto material à volta para essa reflexão erótica e filosófica, sobretudo na oposição entre as peregrinações noturnas que o escritor fazia pelos bas-fonds do bairro do Retiro, na região do porto, entre jovens marinheiros, e as recepções de ricos europeizados e intelectuais.
Para o europeu forçado ao exílio pela guerra, traumatizado e desiludido com o fracasso da sua civilização, a barbárie era facilmente associada às convenções da velha cultura que não soube impedi-la. No Velho Mundo, a luta era contra a morte. No Novo Mundo, lutava-se pelo crescimento. A diferença era fundamental.
Para Gombrowicz, a cultura era um modo de dominação da juventude. Daí para a idealização da realidade inacabada de uma cultura jovem como a argentina era um passo. Para o exilado que não falava espanhol, confrontado com uma elite que o ignorava e rejeitava, a nata da intelectualidade local estava cega para a vida à sua volta e perdia tempo a cultuar a cultura européia.
Incomodava-o o intelectual que se levava muito a sério, com sua incapacidade de rir de si. Numa passagem divertidíssima de "Trans-Atlântico" (1952), cuja ação decorre em Buenos Aires, Gombrowicz narra o encontro com um "gran escritor" (em clara alusão a Borges). Durante uma recepção, os dois travam uma disputa intelectual. Inconformado com a evidente superioridade do "maestro" local, um compatriota do escritor polonês o incita a revidar cada frase do argentino: "Vai! Morde ele!". Mas Gombrowicz diz que não é cachorro e sai com o rabo entre as pernas.
A vantagem de cultuar o inacabado é justamente o poder de rir da própria imperfeição. E Gombrowicz de fato transformou o episódio numa cena hilariante. Achava ridículo que a principal controvérsia dos intelectuais argentinos se arrastasse havia décadas entre os que defendiam uma erudição internacionalista e os partidários de um nacionalismo essencialista. Ficava espantado com a necessidade de artistas e escritores buscarem e exprimirem uma identidade nacional.
A ação do artista é individual: "Queres saber quem és? Não perguntes. Atua. A ação te definirá e determinará. (...) O argentino autêntico nascerá quando se esquecer de que é argentino e sobretudo de de que quer ser argentino; a literatura argentina nascerá quando os escritores se esquecerem da Argentina. Vão se separar da Europa quando a Europa deixar de ser um problema para eles (...). Sua essência se revelará quando deixarem de buscá-la".
Para o escritor de um país aniquilado pela guerra, exilado numa terra estrangeira que não o reconhece, desiludido com a idéia de nação e com a civilização que a inventou, nada mais contraditório do que um artista que procura escapar ao convencional e, querendo ser verdadeiro, vai se agarrar a uma convenção tão traiçoeira e ilusória quanto a de uma "identidade nacional".


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