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WALTER SALLES
Eu, tu, eles, nós
Vamos começar por eles.
A vitória amplamente antecipada de Lars von Trier em Cannes com "Dancer in the Dark"
(Dançarina no Escuro), filme realizado em vídeo, muda parte do
panorama cinematográfico europeu. Como na canção de Roberto,
daqui pra frente, tudo será diferente - para o bem e para o mal.
Em primeiro lugar, a margem
(o vídeo digital) se desloca para o
centro. Com seus planos curtíssimos e sua montagem elíptica, a
narrativa de "Dancer in the
Dark" se aproxima perigosamente do clipe, enquanto o desinteresse pela composição e pelo quadro
se encarrega de distanciar o cinema digital da pintura. O que aflora é apenas o fluxo, o ritmo contínuo.
Algo mais se perde. Nesse melodrama rasgado em que tudo é inverossímil, a começar pela doença
congênita que torna o personagem principal e seu filho cegos, o
que menos importa é a dramaturgia. É um cinema demonstrativo,
que repousa na habilidade que o
realizador tem em manipular o
espectador.
Mais próximo, infelizmente, de
Luc Besson do que do cinema essencial de Robert Bresson. Não foi
por acaso que o presidente do júri
(Besson) se encantou com o filme
de Trier: ambos incorporam o efêmero, o individualismo tecnológico dentro do discurso cinematográfico.
Nesse jogo de faz-de-conta, a ordem dramatúrgica e os atores
perdem importância. Sintomaticamente, é uma cantora (Björk)
que cede sua aparente espontaneidade a "Dancer in the Dark".
Tudo passa a ser uma questão de
"atitude", de vigor cênico, que dá
ao filme uma falsa aspereza, um
tom supostamente primitivo.
Nesta altura, você já deve ter
percebido que não sou exatamente um fã de "Dancer in the Dark",
embora eu não chegue ao extremo de rebatizá-lo de "filmmaker
in the dark" (diretor no escuro),
como o fez um jornalista inglês.
Penso apenas que teria sido melhor se Trier tivesse ganho Cannes
em 96, com o infinitamente superior "Ondas do Destino". Se isso
tivesse acontecido, o festival poderia agora ter feito justiça ao cinema asiático, que apresentou os
melhores filmes da competição.
Obras fortes e poéticas, precisas e
rigorosas, a anos-luz da estética
do videogame e do clipe.
Falando agora de nós. "Eu Tu
Eles", o segundo longa de Andrucha Waddington, é uma prova de
que o cinema brasileiro consegue
se reinventar malgrado as condições de produção claramente adversas. Não estou sendo ufanista.
A delicadeza da narração, a interpretação inspirada dos atores,
a utilização sofisticada da gramática cinematográfica explicam
os cinco minutos de aplausos calorosos que o dificílimo público de
Cannes, composto por aqueles estranhos seres que Godard chama
de "profissionais da profissão",
reservou ao filme na mostra Um
Certo Olhar.
A crítica acompanhou. Da "Variety" norte-americana ao "Nouvel Observateur" francês, todos
falam bem desse relato intimista e
envolvente.
Além de revelar o rápido processo de amadurecimento de um
cineasta talentoso, ""Eu Tu Eles"
mostra que há uma nova safra de
jovens roteiristas brasileiros trabalhando com sensibilidade e
competência.
Tanto os diálogos quanto a estrutura dramática desenvolvidos
por Elena Soarez garantem aos
ótimos atores (Regina Casé, Lima
Duarte, Stênio Garica e Luiz Carlos Vasconcelos) a matéria-prima
necessária para a composição de
personagens que não esqueceremos tão cedo.
Não há só inspiração, mas também muita transpiração por trás
desse acerto. O roteiro foi trabalhado durante três anos, e cabe
aqui mencionar que o laboratório
que vem sendo desenvolvido
anualmente no Brasil pelo instituto Sundance e a Riofilme, e do
qual "Eu Tu Eles" participou, começa a render frutos.
Se a história de Darlene e os
seus três maridos -todos morando em relativa harmonia sob o
mesmo teto- nos surpreende, é
em parte porque ela revisita um
espaço geográfico que já conhecemos, o sertão, a partir de uma ótica feminista. E, se o sertão de "Eu
Tu Eles" não está em transe, ele
não deixa de ser uma terra de resistência. E uma resistência que se
dá nos afetos, nos pequenos gestos
de solidariedade, na ausência de
falsos moralismos, em zonas contíguas de sombra e claridade. São
diferentes formas de sobreviver
ao abandono e à ausência crônica, criminosa, do Estado.
A modernidade do filme reside
justamente no fato de que Andrucha Waddington não julga os
seus personagens, não tenta nos
catequizar. Solidariza-se com
aqueles que olha, e um sentimento de liberdade e tolerância acaba
impregnando as imagens que vemos. Por isso, "Eu Tu Eles" é daqueles raros filmes que nos dão
vontade de fazer e ver mais filmes.
É, também, um quase-milagre
num país que passa a discutir, no
início do século 21, a possibilidade
de as televisões privadas terem
acesso aos recursos já limitados
de Lei do Audiovisual.
Parece inacreditável: enquanto
nos países democráticos as televisões, que são concessões públicas,
são obrigadas a financiar o cinema para garantir uma maior pluralidade no cenário audiovisual,
no Brasil começa-se a falar justamente do contrário. É o mundo
de ponta-cabeça.
Despedidas. Chegou a hora de
filmar novamente. Depois de um
ano e meio desenvolvendo um
novo roteiro, começo a rodar em
breve no norte da Bahia. Por causa do filme, terei de interromper
temporariamente a colaboração
na Ilustrada. Agradeço a todos
que tiveram a paciência de acompanhar esta coluna nos últimos
sete meses e aos amigos que, como
Contardo Calligaris, me ajudaram a tentar olhar sem a câmera.
Aprendi muito durante esse processo. Esta não é minha forma
natural de expressão, e desculpo-me por não ter estado muitas vezes à altura do espaço que me foi
generosamente concedido.
Agradeço, finalmente, à Folha e
a seus editores. Durante todo esse
tempo, escrevi com total liberdade e sem interferência nos assuntos que escolhi desenvolver. Não é
pouco. A todos, até breve.
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