São Paulo, sábado, 27 de maio de 2000


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WALTER SALLES

Eu, tu, eles, nós

Vamos começar por eles. A vitória amplamente antecipada de Lars von Trier em Cannes com "Dancer in the Dark" (Dançarina no Escuro), filme realizado em vídeo, muda parte do panorama cinematográfico europeu. Como na canção de Roberto, daqui pra frente, tudo será diferente - para o bem e para o mal.
Em primeiro lugar, a margem (o vídeo digital) se desloca para o centro. Com seus planos curtíssimos e sua montagem elíptica, a narrativa de "Dancer in the Dark" se aproxima perigosamente do clipe, enquanto o desinteresse pela composição e pelo quadro se encarrega de distanciar o cinema digital da pintura. O que aflora é apenas o fluxo, o ritmo contínuo.
Algo mais se perde. Nesse melodrama rasgado em que tudo é inverossímil, a começar pela doença congênita que torna o personagem principal e seu filho cegos, o que menos importa é a dramaturgia. É um cinema demonstrativo, que repousa na habilidade que o realizador tem em manipular o espectador.
Mais próximo, infelizmente, de Luc Besson do que do cinema essencial de Robert Bresson. Não foi por acaso que o presidente do júri (Besson) se encantou com o filme de Trier: ambos incorporam o efêmero, o individualismo tecnológico dentro do discurso cinematográfico.
Nesse jogo de faz-de-conta, a ordem dramatúrgica e os atores perdem importância. Sintomaticamente, é uma cantora (Björk) que cede sua aparente espontaneidade a "Dancer in the Dark". Tudo passa a ser uma questão de "atitude", de vigor cênico, que dá ao filme uma falsa aspereza, um tom supostamente primitivo.
Nesta altura, você já deve ter percebido que não sou exatamente um fã de "Dancer in the Dark", embora eu não chegue ao extremo de rebatizá-lo de "filmmaker in the dark" (diretor no escuro), como o fez um jornalista inglês.
Penso apenas que teria sido melhor se Trier tivesse ganho Cannes em 96, com o infinitamente superior "Ondas do Destino". Se isso tivesse acontecido, o festival poderia agora ter feito justiça ao cinema asiático, que apresentou os melhores filmes da competição. Obras fortes e poéticas, precisas e rigorosas, a anos-luz da estética do videogame e do clipe.
Falando agora de nós. "Eu Tu Eles", o segundo longa de Andrucha Waddington, é uma prova de que o cinema brasileiro consegue se reinventar malgrado as condições de produção claramente adversas. Não estou sendo ufanista.
A delicadeza da narração, a interpretação inspirada dos atores, a utilização sofisticada da gramática cinematográfica explicam os cinco minutos de aplausos calorosos que o dificílimo público de Cannes, composto por aqueles estranhos seres que Godard chama de "profissionais da profissão", reservou ao filme na mostra Um Certo Olhar.
A crítica acompanhou. Da "Variety" norte-americana ao "Nouvel Observateur" francês, todos falam bem desse relato intimista e envolvente.
Além de revelar o rápido processo de amadurecimento de um cineasta talentoso, ""Eu Tu Eles" mostra que há uma nova safra de jovens roteiristas brasileiros trabalhando com sensibilidade e competência.
Tanto os diálogos quanto a estrutura dramática desenvolvidos por Elena Soarez garantem aos ótimos atores (Regina Casé, Lima Duarte, Stênio Garica e Luiz Carlos Vasconcelos) a matéria-prima necessária para a composição de personagens que não esqueceremos tão cedo.
Não há só inspiração, mas também muita transpiração por trás desse acerto. O roteiro foi trabalhado durante três anos, e cabe aqui mencionar que o laboratório que vem sendo desenvolvido anualmente no Brasil pelo instituto Sundance e a Riofilme, e do qual "Eu Tu Eles" participou, começa a render frutos.
Se a história de Darlene e os seus três maridos -todos morando em relativa harmonia sob o mesmo teto- nos surpreende, é em parte porque ela revisita um espaço geográfico que já conhecemos, o sertão, a partir de uma ótica feminista. E, se o sertão de "Eu Tu Eles" não está em transe, ele não deixa de ser uma terra de resistência. E uma resistência que se dá nos afetos, nos pequenos gestos de solidariedade, na ausência de falsos moralismos, em zonas contíguas de sombra e claridade. São diferentes formas de sobreviver ao abandono e à ausência crônica, criminosa, do Estado.
A modernidade do filme reside justamente no fato de que Andrucha Waddington não julga os seus personagens, não tenta nos catequizar. Solidariza-se com aqueles que olha, e um sentimento de liberdade e tolerância acaba impregnando as imagens que vemos. Por isso, "Eu Tu Eles" é daqueles raros filmes que nos dão vontade de fazer e ver mais filmes.
É, também, um quase-milagre num país que passa a discutir, no início do século 21, a possibilidade de as televisões privadas terem acesso aos recursos já limitados de Lei do Audiovisual.
Parece inacreditável: enquanto nos países democráticos as televisões, que são concessões públicas, são obrigadas a financiar o cinema para garantir uma maior pluralidade no cenário audiovisual, no Brasil começa-se a falar justamente do contrário. É o mundo de ponta-cabeça.
Despedidas. Chegou a hora de filmar novamente. Depois de um ano e meio desenvolvendo um novo roteiro, começo a rodar em breve no norte da Bahia. Por causa do filme, terei de interromper temporariamente a colaboração na Ilustrada. Agradeço a todos que tiveram a paciência de acompanhar esta coluna nos últimos sete meses e aos amigos que, como Contardo Calligaris, me ajudaram a tentar olhar sem a câmera. Aprendi muito durante esse processo. Esta não é minha forma natural de expressão, e desculpo-me por não ter estado muitas vezes à altura do espaço que me foi generosamente concedido.
Agradeço, finalmente, à Folha e a seus editores. Durante todo esse tempo, escrevi com total liberdade e sem interferência nos assuntos que escolhi desenvolver. Não é pouco. A todos, até breve.



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