São Paulo, sábado, 27 de maio de 2006

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Crônica/crítica

Autora mostra em narrativas ferinas uma Paris efervescente

OSCAR PILAGALLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Isadora Duncan (1878-1927) viveu seus ideais na prática. Reinventou a dança, praticou a poliandria, defendeu o bolchevismo. Em tempos espartilhados, subia nos palcos descalça. Certo dia, um delegado francês a abordou: procurava sedição no movimento de seus joelhos. Conhecida apenas pelo primeiro nome, como as rainhas, Isadora surpreendia. Em Moscou, chamou os comunistas de burgueses. Em Paris, numa apresentação, permaneceu imóvel, exceto por esplêndidos passos lentos. "Como se os movimentos da dança se tivessem tornado demasiado redundantes para seu espírito, salvara da dança apenas a sua forma." É assim, com pinceladas precisas, tiradas irônicas e uma eficiente ênfase nos contrastes, que a escritora Janet Flanner traça o perfil de intelectuais e artistas que, como Isadora e ela própria, viveram na agitada Paris do entre-guerras. Embora escritos num perecível registro de crônica jornalística -para a sofisticada revista "New Yorker"-, seus textos, agora reunidos no livro "Paris Era Ontem", não envelheceram. Janet Flanner fazia parte daquela geração de escritores americanos que descobriram a efervescência de Paris nos anos 20. Lá, ela conviveu com gente como Ernest Hemingway, o pioneiro dos expatriados, e o mais famoso deles. Os dois tinham em comum o fato de seus pais terem se suicidado. Tinham também um acordo: um não sofreria com o eventual suicídio do outro, uma vez que "a liberdade podia ser tão importante, no ato de morrer, como nos atos de viver". Hemingway se mataria em 1961; Flanner morreria em 1978, aos 86 anos. O livro recende a nostalgia a partir do título. "Ontem", Flanner morava em hotéis e levava uma vida com poucas limitações. "Ela era atraída pelos eventos e passatempos de uma classe ociosa", anotou sua biógrafa. Não era particularmente antenada. Como nota o escritor James Campbell no prefácio, ela teve dificuldade em decifrar a vanguarda e teria subestimado a ameaça de Hitler, num perfil escrito pouco antes da Segunda Guerra. Seu forte era o estilo. Ficcionista fracassada, encontrou no relato jornalístico breve o formato ideal para sua arte. Para cada personagem, tinha uma frase definitiva. Sobre Bizet, o compositor de "Carmen", Flanner lembra que os toureiros espanhóis ficaram zangados por terem sido chamados de toreadores, uma palavra que ele inventou "porque precisava de quatro sílabas para sua batida de marcha musical." Sobre o fim da influência de Zola: "Ele preserva algum tipo de ascendência mística nos corações das classes trabalhadoras, que tão cruelmente retratou". Sobre a reputação de "grande amoureuse" de Mata Hari: "Seu verdadeiro amor foi o governo alemão e, como mulher e espiã, foi fiel a ele". Sobre a mania de perseguição do excêntrico D.H. Lawrence, autor de "O Amante de Lady Chatterley": "Ele achava que Jung roubara suas teorias de psicanálise, através de uma leitura das primeiras obras de Lawrence". Embora muita tinta tenha sido gasta com coadjuvantes, os verbetes pessoais sobre os protagonistas valem o livro.


OSCAR PILAGALLO , jornalista, é editor das revistas "EntreLivros" e "História Viva" e autor de "A História do Brasil no Século 20" (em cinco volumes, pela Publifolha).

PARIS ERA ONTEM
(1925-1939)
   
Autora: Janet Flanner
Editora: José Olympio
Quanto: R$ 42 (352 págs.)
NA INTERNET - Leia trecho de "Paris Era Ontem" www.folha.com.br/ilustrada


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