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CONTARDO CALLIGARIS
O pato, a nostalgia e a indústria do aconchego
Frequentemente, ao entrar numa casa de classe média, surpreendo-me. O sofá foi
transformado numa barcaça destinada ao transporte de almofadas, cobertorezinhos ou mantas
para as noites de inverno. De tanto querer ser confortável, ele se
tornou impraticável: não há mais
espaço onde sentar.
Ao redor do sofá, em cima de estantes e mesinhas, acumulam-se
os bibelôs: tinteiros art déco, com
canetas pretensamente de âmbar,
Budas e outras chinesices, cerâmicas de Capodimonte ou quase,
pequenos bronzes que evocam
Isadora Duncan, os dias do charleston ou o discóbolo e caixinhas
de prata, ébano ou madrepérola.
Não faltam os patos de madeira,
engodos para caça, que nunca
flutuarão nas águas de um lago
para convocar seus semelhantes.
Essas casas nascem do conúbio
de briques e feiras de antiguidades com o catálogo dos objetos necessários para viver o estilo "conforto na fazenda" (toalhas de mesa xadrez, panos de prato bordados com veados e búfalos, saladeiras de madeira maciça etc.).
Várias revistas de decoração
elogiam nossas habitações quando o sofá é um mostruário de almofadas e as estantes expõem os
restos de um museu falido, ao lado de símbolos campestres. Dizem
que, assim, as casas são aconchegantes.
Isso não significa que nelas a
gente fique à vontade, pois não dá
para sentar no sofá e não dá para
pousar um livro nas mesinhas.
Em compensação, essas habitações proclamam seu próprio
aconchego. Nossas casas ideais
não oferecem conforto, mas tentam convencer hóspedes, moradores e convidados de que elas
são lares gostosos.
Em suma, queremos casas que
signifiquem que temos mesmo
uma casa. Os achados nos briques
do domingo, acumulados, dão-nos a ilusão de estar numa habitação que teria passado de pai a
filhos desde sempre. Lidamos assim com a nostalgia de um tempo
em que três ou quatro gerações viviam juntas e a casa expressava a
permanência da família. Instalamos na sala, como elemento de
decoração, a mesma máquina de
costurar que a avó trouxe da Alemanha e que ficou na colônia. Ou
as luvas bordadas que substituem
aquelas que a mãe mandou vir
da Espanha e que se perderam
quando a sua casa foi desfeita por
uma vizinha, pois a gente não teve tempo de ficar depois do funeral. Quanto às almofadas que jogamos no chão para sentar no sofá, elas servem para evocar um estilo de vida rural que confirmaria
a tranquila estabilidade de nossos
lares.
Com a exceção das casas de modernistas militantes, a habitação
de classe média, desde o século 19,
é um grito de nostalgia. No começo, ela expressava a nostalgia das
hierarquias contestadas pela mobilidade social moderna. A mistura dos estilos Biedermeier com
Louis-Philippe, que ainda era a
regra nos apartamentos milaneses de minha infância, infligia-nos, por exemplo, uma exposição
permanente de bomboneiras de
prata, todas gravadas com os nomes e as datas dos casamentos de
amigos e parentes. Geralmente,
essa exposição acompanhava o
desfile dos porta-retratos. Era
uma maneira de mostrar que a
casa e seus habitantes tinham história e continuidade, um jeito de
afirmar a existência de um clã, de
salientar a relevância das origens
e a extensão da esfera de influência da família. O século promovia
a mobilidade social e queria sacrificar hierarquias e privilégios?
A casa burguesa, com bomboneiras e retratos, reinventava nada
menos que o altar dos lares, os
deuses domésticos da casa romana.
No século 20, a mobilidade,
além de social, tornou-se física. O
nômade contemporâneo tem óbvias dificuldades em constituir
um lar. Logo as "antiguidades" e
o estilo de decoração "country"
vieram ninar nossa nostalgia,
proporcionando-nos mais uma
chance de viver numa paródia do
passado. Decoramos apartamentos alugados por seis meses como
o tipo de habitação que, tradicionalmente, fica na família para
sempre: a fazenda.
Mas há um problema. Os objetos que deveriam exibir nossas
antigas raízes locais são estranhamente universais: o aconchego é uma indústria recente e, portanto, globalizada. A mesma decoração tenta nos convencer de
que temos um lar "local" num
apartamento de Paris, numa casa
do Morumbi, numa "brownstone" do Brooklyn e num flat de Coral Gables. As propagandas de
"Country Living" (vida no campo) prometem que os objetos escolhidos provarão a unicidade
aconchegante de nosso lar. Mentira e irrisão: eles confirmam a
perda inevitável de nossas raízes.
Tentamos nos convencer de que
estamos no aconchego de casa
graças a uma manta de lã igual à
da avó, mas a manta é fabricada
em Taiwan. O pano de prato foi
bordado num abafado galpão de
Jacarta. E o pato de madeira é
chinês.
Quando pararemos com a nostalgia e inventaremos uma estética doméstica para os nossos tempos?
P.S.: A nostalgia de uma ordem
e de um lar perdidos explicam
também o surto de paixão pela vida suburbana (imitação da vida
rural) nos anos 60-80 e a proliferação em nossas casas de peças de
artesanato "local". O mesmo vale
para o kitsch das lembranças de
viagem, mas deixo isso para outra vez.
ccalligari@uol.com.br
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