São Paulo, sábado, 27 de junho de 2009

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ANTONIO CICERO

Homero e as Musas


A beleza dos poemas é prova de sua origem divina, o que legitima a liberdade do poeta


É COMUM O pressuposto de que tanto a consideração puramente estética da obra de arte quanto a autonomia da arte são fenômenos exclusivamente modernos. A verdade, porém, é que, paradoxalmente, já se manifestam modalidades de ambas entre os primeiros poetas gregos cujas obras chegaram até nós.
Como se sabe, os poetas arcaicos se consideravam inspirados pelas Musas, deusas que eles descreviam como filhas de outra divindade, a Memória. Normalmente, essa filiação é interpretada de duas maneiras. Por um lado, supõe-se que ela simbolize o fato de que os poemas preservavam a memória dos feitos originários da comunidade. Assim, o sentido da "Ilíada", de Homero, teria sido manter a memória da Guerra de Troia.
Essa interpretação, porém, é desmentida pelo fato de que a "Odisseia", por exemplo, nada tem a ver com fatos históricos. Ademais, Hesíodo, outro poeta arcaico, fazia suas Musas se gabarem de dizer "muitas mentiras parecidas com a verdade": o que dificilmente fariam, se pretendessem ser as guardiãs da memória do passado.
A outra interpretação se apoia no fato de que a poesia arcaica não era escrita, mas oral. Ela supõe que os poetas recitassem os poemas tradicionais que tivessem memorizado. A deusa Memória simbolizaria a memorização.
Entretanto, o estudo da poesia oral moderna mostrou que, ao recitar os poemas, os poetas orais primários não os repetem palavra por palavra, mas de modo criativo, num processo denominado "composition in performance" (mais ou menos "composição durante a apresentação"), no qual a memorização tem um papel limitado. De fato, Telêmaco, na "Odisseia", afirma serem tanto mais apreciadas as canções quanto mais novas.
Na verdade, tudo indica que os poetas consideram as Musas filhas da Memória, não porque os poemas por elas inspirados guardem a memória de outras coisas, ou porque sejam memorizáveis, mas porque são memoráveis. Já os primeiros poetas líricos, como Píndaro, jactavam-se de que a memorabilidade dos seus poemas conferia memorabilidade também às pessoas de que tratavam.
Mas por que o poeta faz questão de atribuir às Musas e não a si próprio a capacidade de produzir o memorável? Que Homero, por exemplo, faz questão disso, mostra-o a lenda, por ele relatada, do poeta Tâmiris, o Trácio. Atribuindo a si próprio a genialidade dos seus poemas, Tâmiris desafiou as Musas para um duelo. Tendo sido derrotado, as Musas lhe tomaram o talento e a visão.
No fundo, o poeta faz questão de depender das Musas porque tal associação o enobrece. Ele se considera o discípulo e o favorito das deusas. Assim, de certo modo, é como se delas descendesse. Homero faz Ulisses declarar que "entre todos os homens da terra, os poetas merecem honra e respeito, pois a eles a Musa, que ama a raça dos poetas, ensinou".
Com isso, o poeta conquista a liberdade de cantar, nas palavras de Telêmaco, na "Odisseia", "por onde quer que a mente o conduza".
Se não tivesse sido atribuída origem divina às palavras do poeta, elas jamais teriam conquistado semelhante liberdade.
Há uma circularidade evidente no fato de que quem legitima a liberdade do poeta sejam as Musas, mas quem garanta a existência das Musas seja o poeta. Só a evidência de que ele esteja possuído pela divindade quebra tal círculo. Ora, a natureza da evidência de que as Musas possuem o poeta é sugerida pelos versos nos quais o poeta Teógnis afirma que as Musas cantavam "um belo poema: o belo é nosso, o não belo não é nosso".
A beleza dos poemas -que é o que os torna memoráveis- é prova de sua origem divina, e sua origem divina legitima a liberdade do poeta. Por direito, seus poemas são belos por serem divinos; de fato, porém, são divinos por serem belos.
Logo, a primeira preocupação do poeta não é fazer o poema "verdadeiro", mas o poema inesquecivelmente belo; e a primeira exigência do seu público não é escutar um poema "verdadeiro", mas um poema cuja origem se encontre na dimensão da divindade ou, o que dá no mesmo, um poema que lhes dê prazer estético, pois o "cantor divino" é, como se lê na "Odisseia", aquele que "delicia ao cantar".
Uma vez que o puro esplendor do poema constitui a prova da sua autoria divina, nele as considerações morais ou religiosas se subordinam a considerações estéticas.
Se, como diz Goethe, os gregos sonharam mais esplendidamente o sonho da vida é porque -agora sou eu que o digo- sonharam sonhos de poetas e não de profetas, pastores ou sacerdotes.


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