São Paulo, sábado, 27 de junho de 1998

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Na terra de Asterix: "Anima, Animus"

ALBERTO DINES
Colunista da Folha


"Gallia est omnia divisa in partes tres" foi a primeira expressão latina que aprendi ao iniciar o ginasial. Hoje, Dia D, a imensa Gália romana resume-se, para nós, no estádio de Saint Denis, Paris, onde o Brasil joga seu destino futebolístico e os brios nacionais contra a seleção chilena.
Como nas aventuras de Asterix, ocorrem-me um monte de citações em latim, macarrônicas ou não, apropriadas à solenidade do momento. A frondosa árvore do Lácio, cujos galhos espraiam-se pelos quatro cantos do mundo, tem uma sonoridade única, apropriada às situações estelares. Já houve quem dissesse: "Dêem-me uma frase em latim, e eu produzo um lance histórico".
"A sorte está lançada", assim, em bom português, no máximo, serve para o lançamento de uma candidatura presidencial pelo PMDB. Ou para uma chatíssima corrida de Fórmula 1. Não tem dimensão. "Alea jacta est", os dados estão lançados, ou "jacta est alea" (como queria Paulo Ronai no seu imperdível "Não Perca o Seu Latim", 8ª impressão, Nova Fronteira) lembra-nos Júlio Cesar ao transpor o Rubicão, contrariando as ordens do Senado, cauteloso e tíbio.
Das 5.000 especulações e teorias que li e ouvi sobre nossa derrota diante dos "vikings" noruegueses, nenhuma é tão cabal quanto o provérbio citado por Sêneca: "Gladiator in arena consilium capit", o gladiador delibera na arena (conforme o "Dicionário de Expressões Latinas Usuais", de Roberto de Souza Neves, Civilização Brasileira, 1996).
Como todas as fórmulas mágicas, o adágio comporta dois sentidos contraditórios. Primeiro: o gladiador deve avaliar na hora as circunstâncias da peleja; de nada servem planos teóricos, distantes da realidade. Segundo: na liça, a deliberação de última hora é insuficiente; sem uma estratégia prévia, incorporada aos nervos, o mais musculoso gladiador pode tropeçar. O pequeno David não inventou a funda na última hora. Contava com ela, mas, se não tivesse a presença de espírito para procurar as pedras apropriadas, jamais teria goleado Golias.
Pelé, sem o perceber, sinalizou uma explicação para nossa canhestra exibição, antes mesmo de iniciada nossa lamuriosa marselhesa. No bate-bola introdutório dos comentaristas (quando 50% dos telespectadores estão abrindo uma lata de cerveja e os 50% restantes jogam fora outra), nosso pragmático Ministro e Rei discorria sobre a excelência de nossos craques.
E começou a somar o valor de cada um no mercado internacional. Chegou facilmente aos US$ 100 milhões. Vá lá, pensei, neste culto numerológico tão arraigado, o placar que conta já não é dos gols, mas das cotações. Quando a bola começou a rolar naquela atmosfera abúlica e pastoral, lembrei-me da contabilidade armada minutos antes por nosso Número Um. Lá do fundo da memória saltou uma frase de Cláudio Abramo, aristocrata-anarquista: "Burguesia não é classe social, é doença..."
Hemingway contava que, antes de desenvolver uma história, escrevia laudas e mais laudas, até chegar à palavra-verdade. Então deitava tudo no lixo e, a partir da preciosa partícula, desenvolvia urdidura e fabulação. Naquela Terça-Feira Negra também procurei a palavra-chave para figurar e configurar o episódio. Foram aventadas: fibra, vontade, arrogância, humildade e outras menos nobres como parlapatice, convencimento, malandragem etc. Cheguei a uma palavra-vocabulário, tantas as derivações e significações nela contidas. Como antídoto à depressão, baixou o espírito do Chatodorix, o bardo. Aventurei-me pelo providencial latim e esbarrei nas vertentes semânticas do achado.
"Anima, animae" é alma, espírito, sopro vital, força imaterial, que, não obstante, resulta em matéria concreta -obras, atos, gols.
"Animus, animi" é o princípio pensante, distinto do corpo, mas que, lá na outra ponta, acaba por aperfeiçoá-lo -caráter, disposição, empenho, resolução, têmpera, energia. Mais gols.
Palavra-luz, idéia-força que empurra a bola para dentro da rede, o nome desta substância primal é ânimo.



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