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Na terra de Asterix: "Anima, Animus"
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
"Gallia est omnia divisa in
partes tres" foi a primeira expressão latina que aprendi ao
iniciar o ginasial. Hoje, Dia D,
a imensa Gália romana resume-se, para nós, no estádio de
Saint Denis, Paris, onde o Brasil joga seu destino futebolístico e os brios nacionais contra a
seleção chilena.
Como nas aventuras de Asterix, ocorrem-me um monte de
citações em latim, macarrônicas ou não, apropriadas à solenidade do momento. A frondosa árvore do Lácio, cujos galhos espraiam-se pelos quatro
cantos do mundo, tem uma sonoridade única, apropriada às
situações estelares. Já houve
quem dissesse: "Dêem-me uma
frase em latim, e eu produzo
um lance histórico".
"A sorte está lançada", assim, em bom português, no
máximo, serve para o lançamento de uma candidatura
presidencial pelo PMDB. Ou
para uma chatíssima corrida
de Fórmula 1. Não tem dimensão. "Alea jacta est", os dados
estão lançados, ou "jacta est
alea" (como queria Paulo Ronai no seu imperdível "Não
Perca o Seu Latim", 8ª impressão, Nova Fronteira) lembra-nos Júlio Cesar ao transpor o Rubicão, contrariando
as ordens do Senado, cauteloso
e tíbio.
Das 5.000 especulações e teorias que li e ouvi sobre nossa
derrota diante dos "vikings"
noruegueses, nenhuma é tão
cabal quanto o provérbio citado por Sêneca: "Gladiator in
arena consilium capit", o gladiador delibera na arena (conforme o "Dicionário de Expressões Latinas Usuais", de Roberto de Souza Neves, Civilização Brasileira, 1996).
Como todas as fórmulas mágicas, o adágio comporta dois
sentidos contraditórios. Primeiro: o gladiador deve avaliar na hora as circunstâncias
da peleja; de nada servem planos teóricos, distantes da realidade. Segundo: na liça, a deliberação de última hora é insuficiente; sem uma estratégia
prévia, incorporada aos nervos, o mais musculoso gladiador pode tropeçar. O pequeno
David não inventou a funda
na última hora. Contava com
ela, mas, se não tivesse a presença de espírito para procurar
as pedras apropriadas, jamais
teria goleado Golias.
Pelé, sem o perceber, sinalizou uma explicação para nossa canhestra exibição, antes
mesmo de iniciada nossa lamuriosa marselhesa. No bate-bola introdutório dos comentaristas (quando 50% dos
telespectadores estão abrindo
uma lata de cerveja e os 50%
restantes jogam fora outra),
nosso pragmático Ministro e
Rei discorria sobre a excelência de nossos craques.
E começou a somar o valor
de cada um no mercado internacional. Chegou facilmente
aos US$ 100 milhões. Vá lá,
pensei, neste culto numerológico tão arraigado, o placar que
conta já não é dos gols, mas
das cotações. Quando a bola
começou a rolar naquela atmosfera abúlica e pastoral,
lembrei-me da contabilidade
armada minutos antes por
nosso Número Um. Lá do fundo da memória saltou uma
frase de Cláudio Abramo, aristocrata-anarquista: "Burguesia não é classe social, é doença..."
Hemingway contava que,
antes de desenvolver uma história, escrevia laudas e mais
laudas, até chegar à palavra-verdade. Então deitava tudo no lixo e, a partir da preciosa partícula, desenvolvia urdidura e fabulação. Naquela
Terça-Feira Negra também
procurei a palavra-chave para
figurar e configurar o episódio.
Foram aventadas: fibra, vontade, arrogância, humildade e
outras menos nobres como
parlapatice, convencimento,
malandragem etc. Cheguei a
uma palavra-vocabulário,
tantas as derivações e significações nela contidas. Como
antídoto à depressão, baixou o
espírito do Chatodorix, o bardo. Aventurei-me pelo providencial latim e esbarrei nas
vertentes semânticas do achado.
"Anima, animae" é alma, espírito, sopro vital, força imaterial, que, não obstante, resulta
em matéria concreta -obras,
atos, gols.
"Animus, animi" é o princípio pensante, distinto do corpo, mas que, lá na outra ponta,
acaba por aperfeiçoá-lo -caráter, disposição, empenho, resolução, têmpera, energia.
Mais gols.
Palavra-luz, idéia-força que
empurra a bola para dentro da
rede, o nome desta substância
primal é ânimo.
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