São Paulo, sábado, 27 de junho de 1998

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LIVRO
Carvalho Neto inventa o índio verdadeiro

France Presse
Índio queima pneu no Equador


RAFAEL VOGT MAIA ROSA
enviado especial ao Rio de Janeiro

Quem é o índio sul-americano? O folclorista Paulo de Carvalho Neto respondeu, como poucos, à pergunta. Não numa obra teórica, mas em um romance, "Meu Tio Atahualpa", cujo protagonista encarna uma espécie de Macunaíma, um "herói sem caráter" contemporâneo.
Atahualpa, um índio equatoriano, habitante de Quito, fala uma língua que não existe, elaborada pelo autor a partir da mistura de dialeto indígena ("cholo"), espanhol e português do Brasil.
A editora Rocco acaba de reeditar uma tradução para o português realizada em 1978 por Remy Gorga Filho, um amigo do autor.
Muito diferente da literatura que popularizou nos anos 70 com o estereótipo de um índio americano mítico e iniciado em rituais psíquicos, como nas obras de Carlos Castañeda, Carvalho Neto apresenta uma versão mais sincera para a natureza do ameríndio.
Seu romance apresenta um universo em que a tradição e o folclore se contaminam tão rápido pela cultura urbana que geram uma realidade muito mais absurda do que qualquer psicodelismo.
No lugar de viver isolado em um ambiente exótico, o índio Atahualpa é de uma estirpe que ganha a vida como serviçal "apadrinhado" pela aristocracia, trabalhando em embaixadas. Representa a chamada "indiada fodida", nas palavras de Carvalho Neto, sobrevivente nos grandes centros urbanos dos países andinos.
Sua linguagem contaminada reflete a confusão entre sua cultura e a branca, entre a miséria em que vive e o luxo do lugar onde trabalha. Como um "pueta" contrariado, ele declama:
Quando o pobre põe um poncho
o rico fica admirado
faz-se de louco preguntando
se é comprado ou é roubado.

Com essa fantasia de mordomo inglês, Atahualpa acaba enchendo a cara com as bebidas destiladas que encontra na mansão, alternando tarefas domésticas com outras como satisfazer o embaixador, que só se acalma com supositórios sedativos.
Mas o que parecia apenas uma ficção bastante imaginativa e bem-humorada de um folclorista se mostrou, a partir de conversa com o autor (leia entrevista abaixo), um desabafo literário.
Carvalho Neto declarou que, depois de 20 anos como adido cultural, em países como Paraguai, Uruguai, Equador e Chile, não pôde deixar de registrar, mesmo que viesse a parecer uma fábula, a condição até certo ponto doentia de dominação dos povos ameríndios.
Ao passar 17 anos lecionando folclore latino-americano em universidades dos EUA, fez do livro a memória de uma realidade que viu à distância.
Não esconde, em seu discurso, que o entendimento precário do folclore e da cultura nativa nas Américas perdeu tantas evidências de um caráter mais autêntico que o aspecto do que resta hoje é tragicômico. "Meu Tio Atahualpa", embora possa estar esquecido entre livros de antropologia ou na estante de literatura folclórica, é um exemplo de uma literatura em que a projeção estética do folclore sintetiza uma realidade até então inabordável.
Ainda assim, trata-se de uma obra de ficção. Num momento extremo, não suportando mais mal-entendidos, Atahualpa mata seu "professor" -um advogado com quem divide a cela- para fugir com outros índios num carro velho pela Cordilheira dos Andes.

Livro: Meu Tio Atahualpa Autor: Paulo Carvalho Neto.
Lançamento: Rocco
Quanto: R$ 24 (272 págs.)



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