São Paulo, sábado, 27 de junho de 1998

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"Meu Tio Atahualpa' era o "livro de gaveta"

do enviado ao Rio de Janeiro

Leia trechos da entrevista concedida por Paulo de Carvalho Neto à Folha, em seu apartamento no bairro de Copacabana, no Rio. Ele falou de seu trabalho como folclorista e escritor e fez um relato das circunstâncias nas quais escreveu "Meu Tio Atahualpa".

Folha - O sr. diria que existe em sua decisão de escrever um romance uma tentativa de encontrar respostas que não surgiram em seu trabalho como folclorista?
Paulo de Carvalho Neto -
"Recolha tal como está", essa era a metodologia que eu utilizava como folclorista. Tínhamos um gravador de rolo enorme que levávamos no carro até o campo. No começo, a reação era de resistência. Desconfiados, alguns índios nos provocavam com rimas satíricas, e nós gravávamos. Com o tempo, a aproximação foi maior, e a relação ultrapassou a de pesquisador e entrevistado. Primeiramente escrevi um livro com mais de 200 contos folclóricos equatorianos e, a partir dele, fiz "Meu Tio Atahualpa", que é um romance, ficção.
Folha - Até que ponto o sr. deixou de ser um folclorista para escrevê-lo?
Carvalho Neto -
Eu não deixei de ser folclorista para escrever o livro. São duas coisas à parte. Ao escrever o romance, você entra para o lado da projeção estética do folclore. E isso não é exatamente uma decisão. É uma aceitação inconsciente que vai se conformando.
Na verdade, o livro foi resultado de antropologia, diplomacia e, no final de tudo, muita raiva, indignação. Estava saindo de um contato de 20 anos com a língua espanhola e com a política dos países andinos e estava também bastante saturado pelas condições em que a população indígena vivia. Ia a enterros de índios, várias vezes. A maior parte dos crimes narrados no livro realmente aconteceu. Mas os nomes verdadeiros estão perdidos no tempo. Sabe como se chamava esse livro na época em que saiu?
Folha - Como?
Carvalho Neto -
O "livro de gaveta". Porque todos os diplomatas leram. Liam aos poucos. Quando chegava um colega, eles fechavam a gaveta imediatamente (risos). Resultado: sobraram poucos colegas de trabalho.
Folha - O sr. se sente gratificado com a obra?
Carvalho Neto -
Escrevi um livro aberto para todo tipo de leitor. É claro que se trata de uma tragédia, mas ela está aí, em forma de fábula. Então não se pode dizer que é um livro comunista, ou que é um livro fascista. É um livro de arte, e a arte fala por si. É uma pena, no entanto, que no Equador ele tenha sido mal interpretado. "Meu Tio Atahualpa" é considerado um insulto à cultura nacional deles. Não é. É um retrato do que vi.
Folha - O sr. considera que a figura do índio, antes de ser compreendida em sua complexidade, se tornou um estereótipo para a literatura e o cinema brasileiro?
Carvalho Neto -
Isso parece incontornável. Quando as coisas são compreendidas pela metade, viram estereótipos. Quando as coisas são compreendidas em profundidade, viram exemplos.
Folha - Como foi seu exílio nos Estados Unidos?
Carvalho Neto -
Foi uma decisão pessoal, devido à paranóia estabelecida contra as forças de esquerda na década de 60. Fui para os EUA em 68, tiraram meu passaporte e passei dez anos lá sem documentos. Só voltei em 85, quando o Itamaraty me concedeu anistia.
Folha - Como o sr. vê a relação hoje com a questão indígena na América Latina?
Carvalho Neto -
Vários problemas culturais afloraram ao mesmo tempo. Essas coisas que estavam mal vistas, isoladas em regiões distantes hoje, já têm nome. Ao mesmo tempo, são mais compromissos sociais que nem sempre podem ser honrados pelo governo.
Folha - A identidade brasileira depende da compreensão da cultura indígena ou isso também é, de certa forma, um mito?
Carvalho Neto -
Não tem nada de mito. Vivemos lado a lado com os últimos indígenas brasileiros. A obrigação seria assisti-los em tudo o que fosse necessário para que eles pudessem se integrar da melhor forma possível. Acredito que esses índios estão tentando compreender a democracia, o jogo político, enfrentado os problemas com os agricultores, por exemplo. Mas o que se vê é um forte choque cultural, muitas vezes uma guerra se acelerando por falta de compreensão dessas culturas.
Folha - Qual seria a reação de seu personagem, o índio Atahualpa, ao ver o Cristo Redentor no Rio?
Carvalho Neto -
Nunca imaginei Atahualpa no Rio. Mas acredito que seria de identificação. Esse Cristo Corcovado é uma obra excepcional, do ponto de vista estético e pela mensagem que guarda. É um acerto do Brasil. Não tem nada de ufanista. Cada país tem mesmo o seu símbolo, uns põem o Arco do Triunfo. Esse Cristo representa muito bem o que somos. (RVMR)



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