São Paulo, quinta-feira, 27 de julho de 2000


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MÚSICA
Filho de Fela Kuti, que deve se apresentar no Free Jazz, mantém postura política do pai, mas evita comparações
Femi Kuti vem mostrar legado afro-beat


PAULO VIEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM MONTREUX

Hollywood Bowl, EUA, 1985. Fela Kuti, o nigeriano que é considerado pai do afro-beat, tem show marcado com sua banda de 40 integrantes. Está no aeroporto de Lagos, capital da Nigéria, ajeitando-se dentro do avião, quando é preso -para amargar, desta vez, dois anos de xadrez.
O show não é cancelado: o filho o substitui e, ao que consta, pouca gente nota a diferença.
Assim começa a "carreira solo" do saxofonista e cantor Femi Anikulapo Kuti, uma das atrações do próximo Free Jazz, dias 21 e 22 de outubro, no Rio e em São Paulo, respectivamente (mas, cuidado: em se tratando de Free Jazz, o melhor é usar a regra de são Tomé -só acreditar vendo.
Femi fez uma prévia desse show no Festival de Jazz de Montreux, no mesmo sábado em que se apresentaram os brasileiros Martinho da Vila e Paralamas do Sucesso, tocando para uma platéia que não tinha música exatamente como uma de suas prioridades.
"Estou ansioso para conhecer o Brasil", disse à Folha, antes do show na Suíça, com alguma ponta de ironia.
"O Brasil é mais perto da Europa do que da África", explicou, fazendo alusão à ausência de vôos regulares entre os dois continentes (há um, para a África do Sul).
O cantor, que lançou em 1998 o CD "Shoki Shoki" -agora também em versão nacional pela Universal-, segue os passos do pai.
Não tem o histórico carcerário de Fela, mas não deixa de fazer comentários políticos em suas letras. Diz, por exemplo, em "Sorry, Sorry": Com esse tipo de líderes/ Não há esperança para África / Africanos vão sofrer/Até o sofrimento atingir nossos ossos.
Mas a mensagem não é transmitida em andamentos lentos, meditativos. É música para se acabar de dançar, como fazia seu pai.
"Acho que não sou preso porque os líderes nigerianos têm hoje preocupações mais importantes. Entre silenciar um músico e tramar seus próprios golpes, o que você acha que eles preferem fazer?"
O músico não concorda com o termo "pessimista" que tento lhe aplicar. "Sou realista".
Não acredita numa solução armada para o histórico de desigualdades sociais e violência na Nigéria e outros países da África setentrional, mas tampouco enxerga um caminho político.
"Quero acreditar numa revolução positiva. Um caminho para isso pode ser a música."
Ôps, parece que já vimos isso em Marley.
Não que a Jamaica pareça ser um paraíso social, mas é inegável que Marley logrou difundir sua mensagem para muito além do Caribe.
Femi acha que está no caminho e faz fé no que chama de "força positiva" -também nome de sua banda.
Poderia deixar a Nigéria natal, sendo hoje contratado de uma companhia multinacional, mas prefere ficar em Lagos, onde tem um bar.
"Fico menos do que gostaria na Nigéria."
Mas teve tempo de fundar uma ONG, o Movimento contra a Segunda Escravidão, que ele vê em curso, no mundo.
Femi não gosta de ser comparado ao pai, mas não lhe desagrada ser chamado de "herdeiro".
Comenta, com aparente desdém: "A obra do meu pai está muito bem cuidada. É muito fácil achar seus discos."
Femi dedicou "Shoki, Shoki" a Sola, sua irmã caçula, também fundadora da Força Positiva. Ela morreu de câncer em 1997.
Sobre música brasileira, preferiu ser diplomático -muito provavelmente para disfarçar seu pouco conhecimento.
"Prefiro não apontar preferências. Não quero cometer injustiças."
Questionado sobre se poderia chamar ao palco algum dos brasileiros que em Montreux o antecediam, disse: "Em música, como na vida, nada é impossível".
(Como é de imaginar, isso era só um aforismo.)


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