São Paulo, sexta-feira, 27 de julho de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

Celso Furtado revisita Euclydes da Cunha

Ano que vem teremos o centenário do lançamento de "Os Sertões", o livro mais importante de nossa cultura. Antecipando-se à data, a Academia Brasileira de Letras inaugurou uma exposição sobre Euclydes da Cunha e patrocinou um ciclo de conferências, encerrado semana passada, com a palestra de Celso Furtado, uma das mais inteligentes análises jamais feitas da grande obra sobre a Guerra de Canudos.
Oradores que o antecederam, nos meses de junho e julho, falaram sobre Euclydes biograficamente, inserindo-o no contexto de nossa história e, em especial, nos inícios do século 20. Aprendi muito com Alberto Venâncio Filho, Alexei Bueno e Walnice Galvão, que souberam levantar o perfil humano, político e intelectual do escritor fluminense. Coube a Celso Furtado, com o peso de seu nome, fazer a resenha final do que podemos chamar do maior fenômeno cultural de nossa história.
Antes de mais nada, Celso destruiu o bom-mocismo acadêmico que ainda perdura, sobretudo nos arraiais euclydeanos, de onde já surgiram mais de 4.000 títulos da mais extensa bibliografia de nossa literatura. Não há, nem mesmo na política, onde aparecem vultos como Getúlio Vargas, os dois imperadores, Prestes, Mauá e José Bonifácio, nenhuma aproximação com o elevado número de livros e estudos dedicados a Euclydes. O segundo lugar, que parece pertencer a Machado de Assis ou a Vargas, nem chega à metade.
No entanto, o livro de Euclydes é uma obra definitivamente datada, superada na forma e no conteúdo. O estilo é barroco, gongórico -que cada um escolha a classificação que quiser, mas fatalmente chegará à conclusão de que é uma linguagem morta, embora atuante naquele virar de século, tendo como expoentes, entre outros, Rui Barbosa e Coelho Neto, rotundos e fluviais em seus respectivos gêneros.
Ninguém mais escreve como eles. Principalmente ninguém escreve como Euclydes. Ora, sendo a sua linguagem ultrapassada, devíamos concluir que a importância e o mérito do livro estejam no conteúdo. Mas este é também datado, uma vez que Euclydes pagou o preço de sua admiração pela ciência, que na época parecia definir e expressar para sempre o caminho da humanidade.
Tanto na sociologia, na geologia como na etnografia, ele embarcou em canoas sabidamente furadas. Abraçou teses do seu tempo, um tempo que transferia à ciência a explicação e a solução de todos os problemas da humanidade.
Obra típica do século 19, centrada com exclusividade num episódio particular da história brasileira no final do mesmo século, Euclydes ficou tão ultrapassado na ciência como no estilo.
Mas bolas! Por que então ""Os Sertões" é o livro mais importante de nossa cultura? Celso Furtado responde magistralmente que foi pela intuição, o ""feeling" da arte em si, que transcende ciência e estilo.
E Euclydes foi o primeiro a suspeitar que, errando, estava acertando de forma genial. Escrito o livro, provocado o impacto em seu tempo, tanto pela beleza da escrita como pelo acúmulo de tiradas científicas vigentes no seu tempo, Euclydes fez numerosas revisões de seu texto para as sucessivas reedições. E pouco se incomodou em desmanchar os equívocos ou corrigir os erros de suas apreciações técnicas.
O grande volume de emendas, pode-se até afirmar a totalidade das emendas que fez em seu texto, mostra à exaustão que ele optava pela obra-prima literária, e não pela exatidão do tratado sociológico, étnico, geológico ou seja lá o que for. Ergueu o gigantesco painel de que só os gênios são capazes. Ele sabia que tinha em mãos o assunto para a colossal epopéia que ficaria para sempre. Como todo gênio, errou nos detalhes, mas acertou na intuição e no resultado.
Não importam o estilo e a ciência, como não importam o barroco de Aleijadinho e seus leões com cara de macaco em corpo de cachorro. Como o Aleijadinho ele foi todo um momento, ou melhor, um ""momentum". Em resumo: um monumento.
À margem de todas as considerações, Celso Furtado salientou que o único grande intelectual da época que não se entusiasmou com ""Os Sertões" foi exatamente o outro gênio de nossa literatura, Joaquim Maria Machado de Assis. Por motivos óbvios: o bruxo do Cosme Velho não apreciaria aquele estilo tortuoso como cipó, imponente e épico. E seu ceticismo diante da ciência não o levava a aceitar as explicações e soluções que Euclydes apresentava ou sugeria.
Isso não impediu Machado de votar em Euclydes da Cunha para uma das poltronas da Academia que ele fundara com Lúcio de Mendonça. Academia que abrigava, sob a sua presidência, homens como Rui Barbosa, barão do Rio Branco e Coelho Neto -que seriam autênticos antípodas de seu pensamento e gosto.
De qualquer forma, a história acabou sendo escrita com a verdade que conta e que fica. Euclydes da Cunha e Machado de Assis, tão diferentes na obra e na vida, estão reunidos em bronze e memória sob o mesmo teto, com a glória que transcende a ciência e o estilo.



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