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CARLOS HEITOR CONY
Celso Furtado revisita Euclydes da Cunha
Ano que vem teremos o centenário do lançamento de
"Os Sertões", o livro mais importante de nossa cultura. Antecipando-se à data, a Academia
Brasileira de Letras inaugurou
uma exposição sobre Euclydes da
Cunha e patrocinou um ciclo de
conferências, encerrado semana
passada, com a palestra de Celso
Furtado, uma das mais inteligentes análises jamais feitas da grande obra sobre a Guerra de Canudos.
Oradores que o antecederam,
nos meses de junho e julho, falaram sobre Euclydes biograficamente, inserindo-o no contexto
de nossa história e, em especial,
nos inícios do século 20. Aprendi
muito com Alberto Venâncio Filho, Alexei Bueno e Walnice Galvão, que souberam levantar o
perfil humano, político e intelectual do escritor fluminense. Coube a Celso Furtado, com o peso de
seu nome, fazer a resenha final do
que podemos chamar do maior
fenômeno cultural de nossa história.
Antes de mais nada, Celso destruiu o bom-mocismo acadêmico
que ainda perdura, sobretudo nos
arraiais euclydeanos, de onde já
surgiram mais de 4.000 títulos da
mais extensa bibliografia de nossa literatura. Não há, nem mesmo
na política, onde aparecem vultos
como Getúlio Vargas, os dois imperadores, Prestes, Mauá e José
Bonifácio, nenhuma aproximação com o elevado número de livros e estudos dedicados a Euclydes. O segundo lugar, que parece
pertencer a Machado de Assis ou
a Vargas, nem chega à metade.
No entanto, o livro de Euclydes
é uma obra definitivamente datada, superada na forma e no conteúdo. O estilo é barroco, gongórico -que cada um escolha a classificação que quiser, mas fatalmente chegará à conclusão de
que é uma linguagem morta, embora atuante naquele virar de século, tendo como expoentes, entre
outros, Rui Barbosa e Coelho Neto, rotundos e fluviais em seus respectivos gêneros.
Ninguém mais escreve como
eles. Principalmente ninguém escreve como Euclydes. Ora, sendo a
sua linguagem ultrapassada, devíamos concluir que a importância e o mérito do livro estejam no
conteúdo. Mas este é também datado, uma vez que Euclydes pagou o preço de sua admiração pela ciência, que na época parecia
definir e expressar para sempre o
caminho da humanidade.
Tanto na sociologia, na geologia como na etnografia, ele embarcou em canoas sabidamente
furadas. Abraçou teses do seu
tempo, um tempo que transferia à
ciência a explicação e a solução
de todos os problemas da humanidade.
Obra típica do século 19, centrada com exclusividade num episódio particular da história brasileira no final do mesmo século,
Euclydes ficou tão ultrapassado
na ciência como no estilo.
Mas bolas! Por que então ""Os
Sertões" é o livro mais importante
de nossa cultura? Celso Furtado
responde magistralmente que foi
pela intuição, o ""feeling" da arte
em si, que transcende ciência e estilo.
E Euclydes foi o primeiro a suspeitar que, errando, estava acertando de forma genial. Escrito o
livro, provocado o impacto em
seu tempo, tanto pela beleza da
escrita como pelo acúmulo de tiradas científicas vigentes no seu
tempo, Euclydes fez numerosas
revisões de seu texto para as sucessivas reedições. E pouco se incomodou em desmanchar os
equívocos ou corrigir os erros de
suas apreciações técnicas.
O grande volume de emendas,
pode-se até afirmar a totalidade
das emendas que fez em seu texto,
mostra à exaustão que ele optava
pela obra-prima literária, e não
pela exatidão do tratado sociológico, étnico, geológico ou seja lá o
que for. Ergueu o gigantesco painel de que só os gênios são capazes. Ele sabia que tinha em mãos
o assunto para a colossal epopéia
que ficaria para sempre. Como
todo gênio, errou nos detalhes,
mas acertou na intuição e no resultado.
Não importam o estilo e a ciência, como não importam o barroco de Aleijadinho e seus leões com
cara de macaco em corpo de cachorro. Como o Aleijadinho ele
foi todo um momento, ou melhor,
um ""momentum". Em resumo:
um monumento.
À margem de todas as considerações, Celso Furtado salientou
que o único grande intelectual da
época que não se entusiasmou
com ""Os Sertões" foi exatamente
o outro gênio de nossa literatura,
Joaquim Maria Machado de Assis. Por motivos óbvios: o bruxo
do Cosme Velho não apreciaria
aquele estilo tortuoso como cipó,
imponente e épico. E seu ceticismo diante da ciência não o levava a aceitar as explicações e soluções que Euclydes apresentava ou
sugeria.
Isso não impediu Machado de
votar em Euclydes da Cunha para
uma das poltronas da Academia
que ele fundara com Lúcio de
Mendonça. Academia que abrigava, sob a sua presidência, homens como Rui Barbosa, barão
do Rio Branco e Coelho Neto
-que seriam autênticos antípodas de seu pensamento e gosto.
De qualquer forma, a história
acabou sendo escrita com a verdade que conta e que fica. Euclydes da Cunha e Machado de Assis, tão diferentes na obra e na vida, estão reunidos em bronze e
memória sob o mesmo teto, com a
glória que transcende a ciência e
o estilo.
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