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São Paulo, domingo, 27 de julho de 2003

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AMARELO-EXCLUSÃO

Cláudio Assis e Matheus Nachtergaele falam de seus vínculos com o cinema e com "Amarelo Manga"

Filme une diretor "caótico" e ator "raro"

DA REPORTAGEM LOCAL

O amigo está morto. O amor pretendido, inalcançável. O futuro parece ter a cara da solidão.
Quando tudo "demora em ser tão ruim", Matheus Nachtergaele, 33, chora em "Amarelo Manga". Chora o ator, não seu personagem Dunga, um cozinheiro homossexual obcecado em conquistar Wellington (Chico Diaz).
"Naquela cena, foi uma das únicas vezes na minha vida em que deixei eu mesmo chorar, não o personagem", diz Nachtergaele.
A permissão para se emocionar diante da câmera veio da forma como Nachtergaele encarou Dunga. "É um dos meus trabalhos mais honestos", diz o homem que tem seu nome no elenco de 11 longas-metragens brasileiros concluídos nos últimos seis anos. Não quaisquer longas.
Depois de despontar como o inflexível guerrilheiro Jonas em "O que É Isso, Companheiro?" (Bruno Barreto, 1997), ele trabalhou com Walter Salles em "Central do Brasil" (1998) e "O Primeiro Dia" (1999), foi o João Grilo em "O Auto da Compadecida" (Guel Arraes, 2000) e o Sandro Cenoura em "Cidade de Deus" (Fernando Meirelles e Katia Lund, 2002).
"Tive a sorte grande de ter feito filmes bastante vistos. Os bons trabalhos têm um carisma, uma vocação apreensível. Quando os projetos chegam para mim, alguns se destacam, como se eles tivessem uma alma especial. Ou como se o desejo das pessoas envolvidas no projeto fosse genuíno. Acho que tenho um bom faro para sentir o carisma do projeto."
Em "Amarelo Manga", percebeu que "certo grau de caricatura era importante, mas que também havia no [diretor] Cláudio [Assis] e no filme uma busca de sinceridade muito grande. Era importante que um depoimento pessoal estivesse cravado no Dunga".

Desespero
Em nome dessa sinceridade, tentou "dar ao Cláudio a caricatura imaginada no roteiro e, ao mesmo tempo, encontrar brechas". Para que as brechas? "Para exibir um certo desespero meu com relação ao amor, uma certa desconfiança minha na ética das relações amorosas. Tentei deixar alguns pedaços sujos meus aparecerem."
Ao presenciar essa manobra, o diretor de fotografia Walter Carvalho pasmou. "Vi com meus olhos e através da câmera, perto dele, essa entrega, essa transformação, essa oferenda que o corpo daquele menino faz diante da câmera", diz Carvalho, para quem observar atores é a mais cotidiana das tarefas.
Outro dos nomes constantes na produção brasileira atual, Carvalho é o fotógrafo de filmes tão díspares como "Carandiru", de Hector Babenco, e "Filme de Amor", a mais recente experimentação cinematográfica de Júlio Bressane.
O espaço entre esses dois pólos é preenchido por uma extensa lista que inclui "Pequeno Dicionário Amoroso" (Sandra Werneck, 1997), "Abril Despedaçado" (Walter Salles, 2001) "Lavoura Arcaica" (Luiz Fernando Carvalho, 2001) e "Madame Satã" (Karim Aïnouz, 2002).
Como diretor, Carvalho realizou o documentário "Janela da Alma" (2001), em parceria com João Jardim, e, neste momento, dirige, junto com Sandra Werneck, o longa "Cazuza - Preciso Dizer que te Amo", baseado na vida do cantor e compositor.
É, portanto, uma voz autorizada a que diz: "Matheus Nachtergaele é um ser complexo. Ele não finge como os bons atores. Ele não veste o figurino da sequência tal e fala corretamente o seu texto. Ele faz o contrário. Ele se despe, fica puro diante da câmera e, a partir daí, é dominado pela sua própria imaginação. Um ator raro, de uma espécie em extinção".
É também com o conhecimento de quem já fotografou novelas na TV Globo que Carvalho estabelece a comparação: "Para ver o contrário disso [a atuação de Nachtergaele], basta ligar a TV na novela. Os meninos são bonitos, têm os dentes todos perfeitos, os olhos são azuis, a pele é clara, limpa e doce, mas falta gente ali dentro".

Novelas
Das novelas, Nachtergaele até hoje manteve distância. "Por falta de tempo e também por medo da obra aberta, dessa ganância por ibope, de ficar muito tempo mergulhado numa coisa que você pode não estar gostando."
Com essa escolha, acabou realizando a proeza de se tornar um ator popular trabalhando em cinema e teatro e aparecendo na TV apenas em minisséries, como "Hilda Furacão" ou "Os Maias".
Agora, prepara-se para "entrar nesse grande abismo das novelas, pelas mãos carinhosas de João Emanuel Carneiro", que desenvolve especialmente para Nachtergaele um papel em futura trama das 19h na TV Globo.
Os dois tornaram-se amigos quando participaram de "Central do Brasil", que tem roteiro escrito por Carneiro.
Da convivência com Cláudio Assis durante as cinco semanas de filmagens de "Amarelo Manga", Nachtergaele guarda uma lembrança saudosa. "Apesar de algo caótico que o Cláudio carrega, ou talvez por isso, a equipe estava toda contaminada, em estado de arte. É um elogio que faço ao processo dele."
O elogio se torna mais eloquente se considerarmos que essa marca "caótica" na personalidade de Assis já lhe valeu desconfianças alheias sobre sua capacidade de realizar um bom filme.
Nascido em Caruaru, interior de Pernambucano, Assis se mudou para Recife aos 17 anos de idade. "De certa forma, o Cláudio é um personagem desse filme. Um cara que saiu do interior para o litoral em busca de algo e, no Recife, conviveu com aquele universo [da periferia], morou num hotel semelhante", diz Carvalho.
Em Recife, Assis iniciou dois cursos universitários (economia e comunicação social) e abandonou ambos antes de concluí-los, por se sentir "totalmente incompatível" com a estrutura da universidade. "Eu queria fazer coisas, e os professores não deixavam. Eram tapados, reacionários." Quando prossegue no raciocínio sobre o ensino daquela época, Assis faz um volteio de pensamento que é típico nele: "Isso é fruto da própria estrutura. Coitados, eles não têm culpa. E têm também. A gente é burro quando quer".

Pancadaria
Com a universidade deixada para trás, Assis meteu-se no cinema. "Político não quero ser jamais na minha vida. Acho que o cinema é uma forma de dizer alguma coisa. Você prende as pessoas numa sala escura, para ouvir o que você tem a dizer. Por isso não dá pra ficar falando só bobagem."
Trabalhou primeiro como assistente das produções que encontrou e, em seguida, dirigiu quatro curtas: "Padre Henrique - Um Crime Político" (1987), "Soneto do Desmantelo Blue" (1993), "Viva o Cinema" (1996) e "Texas Hotel" (1999), este uma preparação para o longa "Amarelo Manga".
Apresentado no Festival de Brasília, "Texas Hotel" originou o (até aqui) mais rumoroso episódio na vida do cineasta. Indignado com um comentário depreciativo ao filme, Assis saiu nos tapas com o autor das críticas.
Muita gente presenciou a pancadaria, mas o nome preciso do contendor evaporou-se nas memórias. Uns citam um cineasta, outros lembram de outro. Estariam ambos no júri daquele ano.
Assis certamente recorda o tal nome, mas finge não lembrar. "O cara falou mal [do filme] porque estava irritado com outras coisas. Veio dar em mim, e eu dei nele. Daí adoraram. Coisa de Cláudio Assis, que diz palavrão no palco, que faz um filme daquele... Mas é péssimo que se lembrem de mim por isso. Não é bom para mim, para o cinema, para ninguém."
Em "Amarelo Manga", o cineasta escolheu ser visto como o homem que sussurra ao ouvido de Dira Paes. "Outro momento em que eu poderia aparecer é como o cabeleireiro, que pinta tudo de amarelo. Mas não levo jeito para cabeleireiro. Aí o [roteirista] Hilton Lacerda acabou ficando com esse papel."
O cabra macho não se emenda.
(SILVANA ARANTES)


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