São Paulo, terça-feira, 27 de julho de 2004

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Dramaturgo se apóia em religião e tolerância

BEGOÑA BARRENA
DO "EL PAÍS"

Tierno Bokar (1875-1940) foi um homem humilde e extraordinário, um sábio africano que via na tolerância a única possibilidade de sobrevivência do ser humano. Com base no livro "Le sage de Bandiagara" [O sábio de Bandiagara], que Amadou Hampaté Bâ (1901-1991) dedicou ao seu mestre, a nova montagem de Peter Brook é uma bela fábula sobre os ensinamentos desse asceta cuja vida era "límpida como um cristal e pura como uma oração".
O espetáculo, que será apresentado em Barcelona de hoje a 4 de agosto, estreou no começo do mês em Duisburg (Alemanha), na trienal do Ruhr.
Para preparar a montagem, que será exibida em Barcelona como parte da programação do Fórum-Grec, Brook e sua companhia passaram um mês no Mali e em Burkina Fasso. Em Bandiagara, uma pequena aldeia do Mali, conheceram o último discípulo ainda vivo de Tierno Bokar.
"Para entender a verdade deles, tivemos que sair da nossa", explicou Brook, citando palavras do sábio africano que ele usa na peça: "Há três verdades: a minha, a tua e A Verdade. Esta última está no centro e não pertence a ninguém. A minha e a tua são frações dessa Verdade que representa a luz total, simbolizada pela lua cheia". A citação, por extrapolação, nos leva a falar de religião.
"Existe a minha religião, a sua, e A Religião", comenta Brook. "Mas a obra não defende o islamismo contra o cristianismo ou o budismo, porque tanto o islamismo quanto o cristianismo ou o budismo deixaram de ser o que eram. Todas as religiões que nos foram dadas a conhecer por profetas excepcionais se degradam, depois de um certo tempo. A degradação é parte da humanidade. Precisamos assumi-la, porque cada nível de degradação tem suas vantagens. Ademais, a idéia de Deus, seja qual for, escapa a qualquer definição", diz.
O trabalho de Brook parte da adaptação teatral que Marie-Hélène Estienne fez do livro de Hampaté Bâ, e começa situando o espectador em Bandiagara, onde Bokar passa os dias meditando e ensinando seus alunos. Através da figura do narrador, que resgata a tradição oral africana, as primeiras cenas introduzem a rotina que Bokar seguia na África colonizada pelos franceses, e as seguintes expõem ao público os conflitos internos que a romperam.
Marie-Hélène Estienne falou da dificuldade de adaptação. "Por um lado havia as histórias e ensinamentos de Tierno Bokar, e por outro era preciso explicar as disputas que surgiram devido à discrepância entre o significado do número 11 e do número 12 na corrente sufi do Islã".
Essa talvez seja a parte mais complexa da montagem, quando com base em um mal-entendido surge a cisão entre os partidários de repetir a oração "A Pérola da Perfeição" 11 vezes, e os menos ortodoxos que acreditam em dizê-la apenas uma vez. No islamismo, 11 é o número que corresponde à espiritualidade pura -são 11 pilares a sustentar uma mesquita, e sabemos que as datas dos atentados nos Estados Unidos e em Madri, 11 de setembro e 11 de março, não foram escolhas casuais.
A obra explica como o conflito chega aos representantes do governo francês, quando da ocupação alemã na França. Por fim, os franceses tomam as rédeas do assunto e proíbem a oração baseada no número 11, classificando-a como herética. É dessa forma que Tierno Bokar termina por morrer, solitário, considerado traidor por muitos, mas não sem antes pronunciar as palavras: "Peço a Deus que, no momento de minha morte, eu tenha mais inimigos a quem nada tenha feito do que amigos".
Peter Brook evita qualquer identificação com Bokar e sua sabedoria, mas os paralelos são inevitáveis. Para ele é muito claro que apenas a tolerância e um olhar abrangente, especialmente quanto à política, podem garantir a tranqüilidade de espírito, e que são esses os temas que o teatro deveria tratar hoje em dia.
"O choque de ontem pode ser a banalidade de hoje. Por isso, agora cabe ao teatro criar, mesmo que por apenas uma ou duas horas, uma pequena atmosfera de tranqüilidade e paz, aquilo que nos falta na sociedade em que vivemos. O teatro não pode mudar o mundo, mas pode nos propiciar algum alívio."
O "Tierno Bokar" de Brook o faz. É uma montagem que se enquadra à definição de teatro sagrado proposta pelo diretor.


Tradução de Paulo Migliacci


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