|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Dramaturgo se apóia em religião e tolerância
BEGOÑA BARRENA
DO "EL PAÍS"
Tierno Bokar (1875-1940) foi
um homem humilde e extraordinário, um sábio africano que via
na tolerância a única possibilidade de sobrevivência do ser humano. Com base no livro "Le sage de
Bandiagara" [O sábio de Bandiagara], que Amadou Hampaté Bâ
(1901-1991) dedicou ao seu mestre, a nova montagem de Peter
Brook é uma bela fábula sobre os
ensinamentos desse asceta cuja
vida era "límpida como um cristal
e pura como uma oração".
O espetáculo, que será apresentado em Barcelona de hoje a 4 de
agosto, estreou no começo do
mês em Duisburg (Alemanha), na
trienal do Ruhr.
Para preparar a montagem, que
será exibida em Barcelona como
parte da programação do Fórum-Grec, Brook e sua companhia passaram um mês no Mali e em Burkina Fasso. Em Bandiagara, uma
pequena aldeia do Mali, conheceram o último discípulo ainda vivo
de Tierno Bokar.
"Para entender a verdade deles,
tivemos que sair da nossa", explicou Brook, citando palavras do
sábio africano que ele usa na peça:
"Há três verdades: a minha, a tua
e A Verdade. Esta última está no
centro e não pertence a ninguém.
A minha e a tua são frações dessa
Verdade que representa a luz total, simbolizada pela lua cheia". A
citação, por extrapolação, nos leva a falar de religião.
"Existe a minha religião, a sua, e
A Religião", comenta Brook.
"Mas a obra não defende o islamismo contra o cristianismo ou o
budismo, porque tanto o islamismo quanto o cristianismo ou o
budismo deixaram de ser o que
eram. Todas as religiões que nos
foram dadas a conhecer por profetas excepcionais se degradam,
depois de um certo tempo. A degradação é parte da humanidade.
Precisamos assumi-la, porque cada nível de degradação tem suas
vantagens. Ademais, a idéia de
Deus, seja qual for, escapa a qualquer definição", diz.
O trabalho de Brook parte da
adaptação teatral que Marie-Hélène Estienne fez do livro de Hampaté Bâ, e começa situando o espectador em Bandiagara, onde
Bokar passa os dias meditando e
ensinando seus alunos. Através
da figura do narrador, que resgata
a tradição oral africana, as primeiras cenas introduzem a rotina que
Bokar seguia na África colonizada
pelos franceses, e as seguintes expõem ao público os conflitos internos que a romperam.
Marie-Hélène Estienne falou da
dificuldade de adaptação. "Por
um lado havia as histórias e ensinamentos de Tierno Bokar, e por
outro era preciso explicar as disputas que surgiram devido à discrepância entre o significado do
número 11 e do número 12 na corrente sufi do Islã".
Essa talvez seja a parte mais
complexa da montagem, quando
com base em um mal-entendido
surge a cisão entre os partidários
de repetir a oração "A Pérola da
Perfeição" 11 vezes, e os menos ortodoxos que acreditam em dizê-la
apenas uma vez. No islamismo, 11
é o número que corresponde à espiritualidade pura -são 11 pilares a sustentar uma mesquita, e
sabemos que as datas dos atentados nos Estados Unidos e em Madri, 11 de setembro e 11 de março,
não foram escolhas casuais.
A obra explica como o conflito
chega aos representantes do governo francês, quando da ocupação alemã na França. Por fim, os
franceses tomam as rédeas do assunto e proíbem a oração baseada
no número 11, classificando-a como herética. É dessa forma que
Tierno Bokar termina por morrer, solitário, considerado traidor
por muitos, mas não sem antes
pronunciar as palavras: "Peço a
Deus que, no momento de minha
morte, eu tenha mais inimigos a
quem nada tenha feito do que
amigos".
Peter Brook evita qualquer
identificação com Bokar e sua sabedoria, mas os paralelos são inevitáveis. Para ele é muito claro que
apenas a tolerância e um olhar
abrangente, especialmente quanto à política, podem garantir a
tranqüilidade de espírito, e que
são esses os temas que o teatro deveria tratar hoje em dia.
"O choque de ontem pode ser a
banalidade de hoje. Por isso, agora cabe ao teatro criar, mesmo
que por apenas uma ou duas horas, uma pequena atmosfera de
tranqüilidade e paz, aquilo que
nos falta na sociedade em que vivemos. O teatro não pode mudar
o mundo, mas pode nos propiciar
algum alívio."
O "Tierno Bokar" de Brook o
faz. É uma montagem que se enquadra à definição de teatro sagrado proposta pelo diretor.
Tradução de Paulo Migliacci
Texto Anterior: Brasil negocia encenação de nova peça de Peter Brook Próximo Texto: Teatro: Festival de Rio Preto se dissemina dentro e fora da América Índice
|