São Paulo, segunda, 27 de julho de 1998

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VÍDEO LAN€AMENTOS
Clássicos recuperam tons em cópias novas

"Gritos e Sussurros" e "Jules e Jim - Uma Mulher para Dois" chegam ao vídeo depois de terem sido relançados nos cinemas no ano passado

BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha

Como um filme que trata de algo horrível pode ser lembrado justamente pela beleza? Como algo tão sinistro pode produzir tanto prazer contemplativo?
É esse tipo de pergunta que continua assombrando o espectador que depara hoje com um filme como "Gritos e Sussurros", mais de 20 anos depois do seu lançamento.
Todo mundo já ouviu alguma vez falar da história: numa casa de campo, duas mulheres acompanham os últimos instantes da irmã moribunda, sob os cuidados de uma empregada dedicada e resignada após a morte da própria filha ainda criança. Esperam a morte da irmã entre lembranças, neuroses e traumas e as visitas de um médico, de um padre e dos maridos.
Poderia dar uma peça de Tchecov, de Ibsen ou de Strindberg. Mas Bergman parece à primeira vista preocupado sobretudo com uma simbologia que o leva a destacar os rostos e as expressões -mais que os diálogos- como se fossem pinturas, e o cenário, no já tão comentado vermelho de sangue, como uma metáfora das entranhas, dos "interiores" em que se inspirou Woody Allen, um fã declarado, para criar alguns anos depois a sua paródia americana.
A principal questão desse drama psicológico é saber o que resta diante da morte. E o filme mostra que são sempre as mesmas coisas: o desejo, a mesquinharia, o amor, a solidão, o egoísmo e a intolerância. No fundo, a presença da morte não muda nada, a não ser para quem está morrendo.
Por um instante, como o doente que jura que vai tomar jeito se ficar bom, as irmãs saudáveis também pensam em mudar de comportamento, em serem menos mesquinhas, menos egoístas, menos frias. Mas é só por um instante, porque logo voltam ao que são, à inconsciência em relação à morte -ao próprio destino-, como o doente que se esquece do que havia prometido, agora que está curado.
Para além desse drama, entretanto, existe algo de fundamental nesse filme que o eleva acima de um mero teatro psicológico em torno da morte, garantindo ao mesmo tempo a sua originalidade. Em "Gritos e Sussurros", Bergman faz uma analogia entre a bela representação e a impotência diante de um moribundo.
O mais terrível de ver alguém morrendo é que você não pode entrar na sua pele (na verdade, é a última coisa que deseja, tamanho o seu horror diante da evidência crua e direta do que também o espera), não pode salvá-lo, não pode tomar o lugar dele e apenas assiste impotente ao seu próprio fim na pele de um outro.
Da mesma forma, essa representação simbólica faz você assistir a sua própria morte, ceder afinal à sua consciência, mas com um fascínio contemplativo, como se estivesse de fora.
A contemplação aqui é análoga à impotência diante do sofrimento de um moribundo. O espectador também apenas assiste. Só que, sob a mediação desse simbolismo, a impotência se torna mais tolerável, por não provocar mais sofrimento ou horror, mas apenas um deslumbramento estético.
São raros os filmes cujo significado está tão entranhado na própria forma. "Gritos e Sussurros" é um deles. E, sob o risco de parecer acadêmico, bastaria essa transformação do sofrimento em contemplação e consciência, pelas mãos desse cineasta fora do comum, para se afirmar que estamos diante do mais fundamental sentido da arte.

Filme: Gritos e Sussurros Produção: Suécia, 1971 Direção: Ingmar Bergman Com: Harriet Andersson, Liv Ullman, Ingrid Thulin Lançamento: Reserva Especial (011/3105-6101)


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