|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
VÍDEO LAN€AMENTOS
Clássicos recuperam tons em cópias novas
"Gritos e Sussurros" e "Jules e Jim - Uma Mulher para Dois" chegam ao
vídeo depois de terem sido relançados nos cinemas no ano passado
BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha
Como um filme que trata de algo
horrível pode ser lembrado justamente pela beleza? Como algo tão
sinistro pode produzir tanto prazer contemplativo?
É esse tipo de pergunta que continua assombrando o espectador
que depara hoje com um filme como "Gritos e Sussurros", mais de
20 anos depois do seu lançamento.
Todo mundo já ouviu alguma
vez falar da história: numa casa de
campo, duas mulheres acompanham os últimos instantes da irmã
moribunda, sob os cuidados de
uma empregada dedicada e resignada após a morte da própria filha
ainda criança. Esperam a morte da
irmã entre lembranças, neuroses e
traumas e as visitas de um médico,
de um padre e dos maridos.
Poderia dar uma peça de Tchecov, de Ibsen ou de Strindberg.
Mas Bergman parece à primeira
vista preocupado sobretudo com
uma simbologia que o leva a destacar os rostos e as expressões
-mais que os diálogos- como se
fossem pinturas, e o cenário, no já
tão comentado vermelho de sangue, como uma metáfora das entranhas, dos "interiores" em que
se inspirou Woody Allen, um fã
declarado, para criar alguns anos
depois a sua paródia americana.
A principal questão desse drama
psicológico é saber o que resta
diante da morte. E o filme mostra
que são sempre as mesmas coisas:
o desejo, a mesquinharia, o amor,
a solidão, o egoísmo e a intolerância. No fundo, a presença da morte
não muda nada, a não ser para
quem está morrendo.
Por um instante, como o doente
que jura que vai tomar jeito se ficar bom, as irmãs saudáveis também pensam em mudar de comportamento, em serem menos
mesquinhas, menos egoístas, menos frias. Mas é só por um instante, porque logo voltam ao que são,
à inconsciência em relação à morte -ao próprio destino-, como o
doente que se esquece do que havia prometido, agora que está curado.
Para além desse drama, entretanto, existe algo de fundamental
nesse filme que o eleva acima de
um mero teatro psicológico em
torno da morte, garantindo ao
mesmo tempo a sua originalidade.
Em "Gritos e Sussurros", Bergman faz uma analogia entre a bela
representação e a impotência
diante de um moribundo.
O mais terrível de ver alguém
morrendo é que você não pode entrar na sua pele (na verdade, é a
última coisa que deseja, tamanho
o seu horror diante da evidência
crua e direta do que também o espera), não pode salvá-lo, não pode
tomar o lugar dele e apenas assiste
impotente ao seu próprio fim na
pele de um outro.
Da mesma forma, essa representação simbólica faz você assistir a
sua própria morte, ceder afinal à
sua consciência, mas com um fascínio contemplativo, como se estivesse de fora.
A contemplação aqui é análoga à
impotência diante do sofrimento
de um moribundo. O espectador
também apenas assiste. Só que,
sob a mediação desse simbolismo,
a impotência se torna mais tolerável, por não provocar mais sofrimento ou horror, mas apenas um
deslumbramento estético.
São raros os filmes cujo significado está tão entranhado na própria forma. "Gritos e Sussurros"
é um deles. E, sob o risco de parecer acadêmico, bastaria essa transformação do sofrimento em contemplação e consciência, pelas
mãos desse cineasta fora do comum, para se afirmar que estamos
diante do mais fundamental sentido da arte.
Filme: Gritos e Sussurros
Produção: Suécia, 1971
Direção: Ingmar Bergman
Com: Harriet Andersson, Liv Ullman, Ingrid
Thulin
Lançamento: Reserva Especial
(011/3105-6101)
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|