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São Paulo, quarta-feira, 27 de agosto de 2003

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Argentina REENQUADRADA

Roberto Luiz/Clarín
O cineasta Marcelo Piñeyro, diretor de "Plata Quemada", adaptação de romance de Ricardo Piglia, que estará em SP nesta semana para discutir "Kamchatka", sobre família que foge da repressão



Diretor Marcelo Piñeyro, que vem ao Brasil discutir "Kamchatka", fala sobre o momento político e a revisão da ditadura em seu país


SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA

"Algo está morrendo na Argentina." O diagnóstico do cineasta Marcelo Piñeyro, 50, está longe de ter uma conotação negativa. Para o diretor -que vem ao Brasil para participar de evento na Cinemateca-, a crise política desencadeada em dezembro de 2001 provocou uma espécie de onda generalizada de autocrítica na sociedade argentina, fazendo agonizar antigas interpretações sobre o passado e velhos preconceitos.
Entusiasmado pelos primeiros passos do justicialista Néstor Kirchner na Presidência ("pelo menos até aqui", avisa), Piñeyro crê que a Argentina está deixando um estado de apatia que lhe permite reavaliar a própria história.
Um dos aspectos dessa transformação, diz, é um novo olhar para as consequências que o período militar (1976-83) trouxe para a vida da população.
A ditadura voltou à ordem do dia na Argentina desde que Kirchner -no poder há três meses- começou a tomar medidas visando o fim da impunidade e da anistia a militares suspeitos de violar direitos humanos durante o regime, durante o qual desapareceram 30 mil pessoas.
A ditadura é também o tema de "Kamchatka", o mais recente trabalho do diretor. Nele, Piñeyro parte do ponto de vista de um garoto cujos pais fogem da perseguição política para tentar mostrar como a atmosfera de medo e violência marcou profundamente o cotidiano de muitas famílias.
O filme será exibido amanhã, na sala Cinemateca. A sessão será seguida de debate com o também cineasta Hector Babenco, o jornalista Pedro Bial e o filósofo José Arthur Giannotti. Na sexta, Piñeyro participa de evento na Folha.
Abaixo, os principais trechos da entrevista que Piñeyro concedeu, por telefone, de Buenos Aires.
 

Folha - "Kamchatka" retoma o tema da ditadura com o qual você já havia trabalhado, como produtor de "A História Oficial" (1984). O que mudou na maneira como a sociedade argentina reflete sobre a questão desde os anos 80 até hoje?
Marcelo Piñeyro -
As pessoas vêem o período hoje de forma diferente à dos anos 80. "A História Oficial" foi realizado logo depois do fim da ditadura. Não havia ainda uma perspectiva geral do que havia ocorrido e nem uma dimensão do horror pelo qual passara a Argentina. Existia uma grande parte da sociedade que, como a protagonista Alicia (Norma Aleandro), havia atravessado o período de terror sem dar-se conta do que este significara.
Hoje, 20 anos depois do fim da ditadura, existe uma outra perspectiva. Ainda há uma sensação -que por sorte nestes últimos meses se reverteu um pouco- de que a ditadura havia deixado uma marca de impunidade muito difícil de superar. Impunidade que já não estava só nos crimes da ditadura, mas que havia se estendido a todas as áreas da sociedade.
Isso foi particularmente intenso nos anos 90, com o neoliberalismo. Ali a impunidade já se havia estabelecido como modo regular de funcionamento do poder.
Não sei por quanto tempo durará o momento que vivemos, mas, desde o início deste novo governo, parece existir um esforço sério de rever o tema da ditadura.

Folha - Em uma entrevista recente à Folha, o escritor Juan José Saer comparou o bom momento que vive o cinema argentino com a sensação comum de aumento da libido em pessoas que presenciam um funeral. Ou seja, como se um ato instintivo movesse as pessoas a criar algo novo em meio à crise. Você concorda com a metáfora?
Piñeyro -
Seguramente creio que algo está morrendo na Argentina. Em crises passadas, as pessoas simplesmente rompiam com o que produzia e identificava o país. Agora deu-se o contrário. As pessoas se voltaram à produção cultural, como se por meio dela pudessem refletir sobre os fatos.

Folha - Foi uma autocrítica?
Piñeyro -
A Argentina sempre evitou ver sua verdadeira cara no espelho. A nossa última ilusão foi a do milagre econômico, que produziu uma idéia de que fazíamos parte do Primeiro Mundo, durante os anos 90, num momento em que, na verdade, criava-se a maior exclusão social da nossa história.
Mas, de repente, não houve outra opção que a de finalmente olharmo-nos no espelho. E o que o espelho devolveu não era nada bonito. Creio que o cinema nos ajudou a enfrentar a realidade.

Folha - Nos seus dois filmes mais recentes, "Plata Quemada" e "Kamchatka", o que não se diz tem quase mais importância do que o que está nos discursos. Qual a importância do silêncio para você?
Piñeyro -
É muito bom ouvir isso, pois é exatamente o que eu busco, não deixar que tudo esteja explícito nas falas. Procuro deixar bastante marcado o contraste entre o não-dito, silêncios, pausas e as enormes agitações e ruídos.
Em "Plata Quemada" acho que isso se dá de maneira mais extrema. O contraste entre pausas e vertigens é mais agudo. Já "Kamchatka" tem uma superfície menos contrastada. Nele me preocupei para que todas as coisas que parecem imprescindíveis de serem contadas num filme sobre a ditadura não fossem explicadas. Ainda assim, a ditadura é uma presença poderosa.
Por isso escolhi a visão e a inocência de um menino para contar a história, para que o espectador pudesse dividir com ele tudo o que sabe e o que não sabe. Não há cenas de violência, mas ela está presente, ameaçadora. É mais forte que a violência explícita.

Folha - O menino é uma espécie de alter ego seu? O fato de ser fascinado por magia tem alguma relação com seu ofício de cineasta?
Piñeyro -
Eu era um pouco mais velho durante a ditadura, tinha 20 anos, e não vi as coisas da mesma maneira que o garoto. Mas, no que diz respeito ao seu interesse pela magia, sim, isso tem muito a ver com a minha infância. Os mundos ficcionais e lúdicos servem para entender e traduzir a realidade para uma pessoa. Isso sempre funcionou comigo. A ficção me serviu desde pequeno para que eu entendesse as coisas.


KAMCHATKA. Exibição do filme e debate com Marcelo Piñeyro, Hector Babenco, Pedro Bial e José Arthur Giannotti. Quando: amanhã, a partir das 19h30. Onde: Cinemateca Brasileira (largo Senador Raul Cardoso, 207, Vila Mariana, SP). Entrada franca. Inscrições pelo telefone: 0/xx/11/5084-2153.


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