|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Argentina REENQUADRADA
Roberto Luiz/Clarín
|
O cineasta Marcelo Piñeyro, diretor de "Plata Quemada", adaptação de romance de Ricardo Piglia, que estará em SP nesta semana para discutir "Kamchatka", sobre família que foge da repressão |
Diretor Marcelo Piñeyro, que vem ao Brasil discutir "Kamchatka", fala sobre o momento político e a revisão da ditadura em seu país
|
SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA
"Algo está morrendo na Argentina." O diagnóstico do cineasta
Marcelo Piñeyro, 50, está longe de
ter uma conotação negativa. Para
o diretor -que vem ao Brasil para participar de evento na Cinemateca-, a crise política desencadeada em dezembro de 2001
provocou uma espécie de onda
generalizada de autocrítica na sociedade argentina, fazendo agonizar antigas interpretações sobre o
passado e velhos preconceitos.
Entusiasmado pelos primeiros
passos do justicialista Néstor
Kirchner na Presidência ("pelo
menos até aqui", avisa), Piñeyro
crê que a Argentina está deixando
um estado de apatia que lhe permite reavaliar a própria história.
Um dos aspectos dessa transformação, diz, é um novo olhar
para as consequências que o período militar (1976-83) trouxe para a vida da população.
A ditadura voltou à ordem do
dia na Argentina desde que
Kirchner -no poder há três meses- começou a tomar medidas
visando o fim da impunidade e da
anistia a militares suspeitos de
violar direitos humanos durante o
regime, durante o qual desapareceram 30 mil pessoas.
A ditadura é também o tema de
"Kamchatka", o mais recente trabalho do diretor. Nele, Piñeyro
parte do ponto de vista de um garoto cujos pais fogem da perseguição política para tentar mostrar como a atmosfera de medo e
violência marcou profundamente
o cotidiano de muitas famílias.
O filme será exibido amanhã, na
sala Cinemateca. A sessão será seguida de debate com o também
cineasta Hector Babenco, o jornalista Pedro Bial e o filósofo José
Arthur Giannotti. Na sexta, Piñeyro participa de evento na Folha.
Abaixo, os principais trechos da
entrevista que Piñeyro concedeu,
por telefone, de Buenos Aires.
Folha - "Kamchatka" retoma o tema da ditadura com o qual você já
havia trabalhado, como produtor
de "A História Oficial" (1984). O
que mudou na maneira como a sociedade argentina reflete sobre a
questão desde os anos 80 até hoje?
Marcelo Piñeyro - As pessoas
vêem o período hoje de forma diferente à dos anos 80. "A História
Oficial" foi realizado logo depois
do fim da ditadura. Não havia ainda uma perspectiva geral do que
havia ocorrido e nem uma dimensão do horror pelo qual passara a Argentina. Existia uma
grande parte da sociedade que,
como a protagonista Alicia (Norma Aleandro), havia atravessado
o período de terror sem dar-se
conta do que este significara.
Hoje, 20 anos depois do fim da
ditadura, existe uma outra perspectiva. Ainda há uma sensação
-que por sorte nestes últimos
meses se reverteu um pouco- de
que a ditadura havia deixado uma
marca de impunidade muito difícil de superar. Impunidade que já
não estava só nos crimes da ditadura, mas que havia se estendido
a todas as áreas da sociedade.
Isso foi particularmente intenso
nos anos 90, com o neoliberalismo. Ali a impunidade já se havia
estabelecido como modo regular
de funcionamento do poder.
Não sei por quanto tempo durará o momento que vivemos, mas,
desde o início deste novo governo, parece existir um esforço sério
de rever o tema da ditadura.
Folha - Em uma entrevista recente à Folha, o escritor Juan José Saer
comparou o bom momento que vive o cinema argentino com a sensação comum de aumento da libido
em pessoas que presenciam um funeral. Ou seja, como se um ato instintivo movesse as pessoas a criar
algo novo em meio à crise. Você
concorda com a metáfora?
Piñeyro - Seguramente creio que
algo está morrendo na Argentina.
Em crises passadas, as pessoas
simplesmente rompiam com o
que produzia e identificava o país.
Agora deu-se o contrário. As pessoas se voltaram à produção cultural, como se por meio dela pudessem refletir sobre os fatos.
Folha - Foi uma autocrítica?
Piñeyro - A Argentina sempre
evitou ver sua verdadeira cara no
espelho. A nossa última ilusão foi
a do milagre econômico, que produziu uma idéia de que fazíamos
parte do Primeiro Mundo, durante os anos 90, num momento em
que, na verdade, criava-se a maior
exclusão social da nossa história.
Mas, de repente, não houve outra opção que a de finalmente
olharmo-nos no espelho. E o que
o espelho devolveu não era nada
bonito. Creio que o cinema nos
ajudou a enfrentar a realidade.
Folha - Nos seus dois filmes mais
recentes, "Plata Quemada" e
"Kamchatka", o que não se diz tem
quase mais importância do que o
que está nos discursos. Qual a importância do silêncio para você?
Piñeyro - É muito bom ouvir isso, pois é exatamente o que eu
busco, não deixar que tudo esteja
explícito nas falas. Procuro deixar
bastante marcado o contraste entre o não-dito, silêncios, pausas e
as enormes agitações e ruídos.
Em "Plata Quemada" acho que
isso se dá de maneira mais extrema. O contraste entre pausas e
vertigens é mais agudo. Já "Kamchatka" tem uma superfície menos contrastada. Nele me preocupei para que todas as coisas que
parecem imprescindíveis de serem contadas num filme sobre a
ditadura não fossem explicadas.
Ainda assim, a ditadura é uma
presença poderosa.
Por isso escolhi a visão e a inocência de um menino para contar
a história, para que o espectador
pudesse dividir com ele tudo o
que sabe e o que não sabe. Não há
cenas de violência, mas ela está
presente, ameaçadora. É mais forte que a violência explícita.
Folha - O menino é uma espécie
de alter ego seu? O fato de ser fascinado por magia tem alguma relação com seu ofício de cineasta?
Piñeyro - Eu era um pouco mais
velho durante a ditadura, tinha 20
anos, e não vi as coisas da mesma
maneira que o garoto. Mas, no
que diz respeito ao seu interesse
pela magia, sim, isso tem muito a
ver com a minha infância. Os
mundos ficcionais e lúdicos servem para entender e traduzir a
realidade para uma pessoa. Isso
sempre funcionou comigo. A ficção me serviu desde pequeno para que eu entendesse as coisas.
KAMCHATKA. Exibição do filme e
debate com Marcelo Piñeyro, Hector
Babenco, Pedro Bial e José Arthur
Giannotti. Quando: amanhã, a partir das
19h30. Onde: Cinemateca Brasileira
(largo Senador Raul Cardoso, 207, Vila
Mariana, SP). Entrada franca. Inscrições
pelo telefone: 0/xx/11/5084-2153.
Texto Anterior: Programação de TV Próximo Texto: Frases Índice
|