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São Paulo, sábado, 27 de setembro de 2003

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WALTER SALLES

"Irreversível" e o cinema do explícito

O divisor de águas talvez tenha sido "Pulp Fiction", de Tarantino. Três amigos discutem dentro de um carro em movimento. Uma arma dispara acidentalmente. O jovem negro sentado no banco de trás é atingido. Miolos voam para todos os lados. Os dois outros sujeitos riem. Um problema grave é debatido: como limpar o carro?
"Quando vi isso, pensei: pronto, o cinema mudou. Para pior. Agora vale tudo", me disse uma vez Tomas Vinterberg -um dos criadores do Dogma dinamarquês e autor do excelente "Festa de Família". Muita gente concorda com essa tese, a começar por Paul Schrader, que escreveu "Taxi Driver" para Martin Scorsese.
De fato, desde então, o cinema do tudo-mostrar tem sido declinado exaustivamente em várias latitudes. O exemplo mais recente dessa "nova" escola desembarcou ontem nos cinemas brasileiros: "Irreversível", dirigido pelo franco-argentino Gaspar Noé.
É interessante como filmes como "Irreversível" seguem um manual certinho e amplamente programado. O espectador é levado à posição de voyeur enquanto cenas supostamente escandalosas se encadeiam -geralmente, em plano-sequência. Há de tudo um pouco: curra, vingança, sexo "transgressor", homofobia, tudo isso salpicado de pitadas de filosofia barata. Você sabe, máximas sobre o tempo, o destino, a vida -quase sempre banalizações de Nietzsche ou Schopenhauer. Os atores, por sua vez, não falam. Berram. Toda uma "nova dramaturgia", invariavelmente acompanhada por entrevistas que proferem que o público está anestesiado e precisa ser despertado.
"Irreversível" começa, audácia suprema, pelo fim -como "Amnésia". Um homem (Vincent Cassel) entra numa boate batizada sutilmente de "Rectum". Ato contínuo, esmaga a cabeça de um outro homem com um extintor. Plano seguinte de dez minutos, sem corte: uma mulher (Monica Bellucci, mulher de Cassel no filme e na vida real) é estuprada em uma passagem subterrânea. E assim vamos, projetados de uma cena a outra, até que entendemos que Cassel se vingou no início do filme do homem que violentou a mulher grávida. Como um filme de Charles Bronson, só que de marcha a ré.
Não há muito mais do que isso. A não ser, é claro, a frase que é estampada na tela no final do filme, para tentar dar sentido ao todo: "O tempo destrói tudo". OK, o tempo destrói tudo. E?
Interessantemente, filmes que trataram de forma mais vertical da violência neste início de século o fizeram de maneira muito mais dolorosa justamente por optarem por nem tudo mostrar. É o caso de "Fogos de Artifício", do mestre japonês Takeshi Kitano. Ou de "About Love Tokyo", filme de outro diretor japonês, Mitsuo Yanagimashi.
Neste último, a violência existencial é muito mais impressionante do que a de "Irreversível". Yanagimashi acompanha a vida de imigrantes chineses em Tóquio. São homens que sobrevivem trabalhando em um matadouro. Logo entendemos que não há muita diferença entre a vida desses exilados e a dos animais que eles matam. Nada é verbalizado. Não se vê uma vaca ser morta. Mas a dor que se sente é quase indescritível. O sangue não está à vista, está impregnado no negativo.
É uma forma de fazer cinema que acredita, ao contrário de "Irreversível" e afins, no fora-de-campo, no não-dito, naquilo que é sugerido, e não sublinhado. "Cinema deve ser indireto", já dizia Mário Peixoto.
Ao público, a escolha. O público que, aliás, é sempre visto por diretores como Noé como uma massa que precisa ser salva. Que saudades do "Último Tango em Paris", de Bertolucci, de "O Império dos Sentidos", de Oshima, ou dos filmes de Pasolini. Do cinema que transgredia de verdade.


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