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WALTER SALLES
"Irreversível" e o cinema do explícito
O divisor de águas talvez
tenha sido "Pulp Fiction",
de Tarantino. Três amigos discutem dentro de um carro em movimento. Uma arma dispara acidentalmente. O jovem negro sentado no banco de trás é atingido.
Miolos voam para todos os lados.
Os dois outros sujeitos riem. Um
problema grave é debatido: como
limpar o carro?
"Quando vi isso, pensei: pronto,
o cinema mudou. Para pior. Agora vale tudo", me disse uma vez
Tomas Vinterberg -um dos criadores do Dogma dinamarquês e
autor do excelente "Festa de Família". Muita gente concorda
com essa tese, a começar por Paul
Schrader, que escreveu "Taxi Driver" para Martin Scorsese.
De fato, desde então, o cinema
do tudo-mostrar tem sido declinado exaustivamente em várias
latitudes. O exemplo mais recente
dessa "nova" escola desembarcou
ontem nos cinemas brasileiros:
"Irreversível", dirigido pelo franco-argentino Gaspar Noé.
É interessante como filmes como "Irreversível" seguem um manual certinho e amplamente programado. O espectador é levado à
posição de voyeur enquanto cenas supostamente escandalosas se
encadeiam -geralmente, em
plano-sequência. Há de tudo um
pouco: curra, vingança, sexo
"transgressor", homofobia, tudo
isso salpicado de pitadas de filosofia barata. Você sabe, máximas
sobre o tempo, o destino, a vida
-quase sempre banalizações de
Nietzsche ou Schopenhauer. Os
atores, por sua vez, não falam.
Berram. Toda uma "nova dramaturgia", invariavelmente
acompanhada por entrevistas
que proferem que o público está
anestesiado e precisa ser despertado.
"Irreversível" começa, audácia
suprema, pelo fim -como "Amnésia". Um homem (Vincent Cassel) entra numa boate batizada
sutilmente de "Rectum". Ato contínuo, esmaga a cabeça de um outro homem com um extintor. Plano seguinte de dez minutos, sem
corte: uma mulher (Monica Bellucci, mulher de Cassel no filme e
na vida real) é estuprada em uma
passagem subterrânea. E assim
vamos, projetados de uma cena a
outra, até que entendemos que
Cassel se vingou no início do filme
do homem que violentou a mulher grávida. Como um filme de
Charles Bronson, só que de marcha a ré.
Não há muito mais do que isso.
A não ser, é claro, a frase que é estampada na tela no final do filme, para tentar dar sentido ao todo: "O tempo destrói tudo". OK, o
tempo destrói tudo. E?
Interessantemente, filmes que
trataram de forma mais vertical
da violência neste início de século
o fizeram de maneira muito mais
dolorosa justamente por optarem
por nem tudo mostrar. É o caso de
"Fogos de Artifício", do mestre japonês Takeshi Kitano. Ou de
"About Love Tokyo", filme de outro diretor japonês, Mitsuo Yanagimashi.
Neste último, a violência existencial é muito mais impressionante do que a de "Irreversível".
Yanagimashi acompanha a vida
de imigrantes chineses em Tóquio. São homens que sobrevivem
trabalhando em um matadouro.
Logo entendemos que não há
muita diferença entre a vida desses exilados e a dos animais que
eles matam. Nada é verbalizado.
Não se vê uma vaca ser morta.
Mas a dor que se sente é quase indescritível. O sangue não está à
vista, está impregnado no negativo.
É uma forma de fazer cinema
que acredita, ao contrário de "Irreversível" e afins, no fora-de-campo, no não-dito, naquilo que
é sugerido, e não sublinhado. "Cinema deve ser indireto", já dizia
Mário Peixoto.
Ao público, a escolha. O público
que, aliás, é sempre visto por diretores como Noé como uma massa
que precisa ser salva. Que saudades do "Último Tango em Paris",
de Bertolucci, de "O Império dos
Sentidos", de Oshima, ou dos filmes de Pasolini. Do cinema que
transgredia de verdade.
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