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São Paulo, segunda-feira, 27 de outubro de 2003

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NELSON ASCHER

Por que os poetas são neuróticos

A imagem contemporânea dos poetas não está entre as melhores. No Brasil e um pouco em toda parte, eles são tidos como truculentos, em especial quando se trata das relações (negativamente) passionais que uns mantêm com quase todos os outros. Se os versificadores têm, em geral, os nervos à flor da pele, tal aflição epidérmica (mas nada superficial) decorre menos da hipersensibilidade que lhes é equivocadamente atribuída do que de determinadas condições inerentes ao ofício.
Quando, por exemplo, alguém enche cem páginas com um texto contínuo e, neste, discernem-se personagens reconhecíveis desempenhando, por mais incoerente que se revele, tal ou qual ação, isto é, se num prolongado conglomerado de palavras se associam a certos substantivos próprios uns tantos verbos e/ou adjetivos mesmo que absolutamente impróprios, o resultado será um romance. Talvez esse seja horrendo, uma desonra para o gênero, o pior romance jamais escrito. Ainda assim, será um romance e seu autor, ou melhor, perpetrador, quiçá seja o indivíduo mais indigno que um dia empunhou uma pena de ganso ou catou às cegas restos de milho num teclado, não obstante ele ou ela fará jus ao título de romancista. Temos aqui, sem dúvida, uma relação relativamente direta entre o produto de um trabalho e o estatuto de seu realizador. Quem escreva um romance é romancista. Se esse for bom, ele também o é. Se ruim, ele não deixa, no entanto, de ser um romancista, se bem que possa ser considerado um mau, detestável, assustador praticante do gênero. E pronto.
Com a poesia é diferente. Embora haja bons e maus poemas e, consequentemente, bons e maus poetas, existe algo pior, muito pior: o não-poema composto pelo não-poeta. E descomposto pelos críticos. Carregar a fama de mau poeta é embaraçoso, mas, depois de ter tentado escrever poesia, não conseguir nem sequer ser reconhecido como o pior poeta municipal, estadual ou nacional é uma humilhação que, de tão irrecorrível, exigiria a rigor a solução à qual os samurais recorrem em situações idênticas.
Nem sempre foi assim. Houve uma época em que os candidatos a poeta dispunham de receitas garantidas. Bastava alinhavar 14 decassílabos (preferencialmente de pés não quebrados), rimá-los de acordo com tal ou qual padrão consagrado e arrematar o conjunto com uma frase de efeito, a chave de ouro, e, presto, chegava-se não só a um soneto, como também a um sonetista. Recuando no tempo, encontramos os escaldos escandinavos e os bardos celtas que, na Islândia ou na Irlanda medievais submetiam-se anos a fio a uma disciplina que faria qualquer pós-doutorando em Letras empalidecer. Eles memorizavam quantidades pré-industriais de poesia tradicional, aprendiam a manejar dezenas de metros e ritmos distintos aos quais se aplicavam diversos esquemas rímicos e/ou aliterativos e eram também iniciados nos mistérios da construção de imagens que, de tão complexas, assemelhavam-se antes às fórmulas mágicas. Ao fim e ao cabo, como não havia então falta de reis no mercado, tanto suor, sangue e lágrimas rendiam aos escaldos e bardos uma merecida sinecura vitalícia em alguma corte.
Acontece que, na medida em que o número de monarcas diminuía, o de poetas crescia e se multiplicava, e atualmente a única corte que emprega um laureado é a britânica. Paralelamente, a própria poesia sofreu incontáveis transformações, despedindo-se das fórmulas garantidas, despindo-se das convenções explícitas e adquirindo outras, tácitas ou implícitas que, de sobra, têm o péssimo hábito de mudar repentinamente, sem aviso prévio. Quem quer que se aventure no labirinto intricado de versos brancos, versos livres, poemas em prosa, poesia concreta, poesia marginal, poemas-piada, imagens surrealistas, enumerações caóticas etc. tem de levar consigo e desenovelar seu próprio fio. E ninguém lhe promete que, no meio do caminho de sua vida, esse não vá se emaranhar ou se romper. A primeira tarefa dos candidatos a poeta é a de auscultarem, com o estetoscópio que Deus lhes deu (ou não deu), o tórax da produção contemporânea de modo a descobrirem quais entre os pacientes seguem vivos e saudáveis, quais estão moribundos e quais já reservaram sua gaveta no Instituto Médico Legal.
A liberdade conquistada é, antes de mais nada, a de errar. Os acertos são poucos, difíceis e nem sempre, aliás quase nunca, óbvios. E, malgrado tamanhas complexidades ou complicações, os poemas de verdade são reconhecíveis a olho nu e, o que é mais grave seja para os poetas, seja para os críticos profissionais, pelo público leigo. O mesmo sucede com o não-poema que denuncia e expõe ao escárnio generalizado o não-poeta. Diferentemente, portanto, dos outros gêneros literários, há um umbral que uma coleção de palavras precisa ultrapassar para que seja admitida enquanto um poema entre outros.
Os que se empenham nessa empresa, caso tenham consciência do perigo envolvido, raramente deixam de se perguntar, a cada ponto final que colocam (nos textos pontuados de forma convencional, é claro), se acabaram ou não de escrever um poema. E a resposta não é dada de antemão. Ela pode demorar. Ou não chegar nunca. Talvez haja muitas respostas simultâneas só que mutuamente contraditórias. No intervalo, o máximo que o autor pode legitimamente dizer de si é que ele ou ela escreve ou tenta escrever poemas. São, em última instância, o público e o tempo que lhes darão ou negarão o título honorífico de poeta. Como, nessas condições, admirar-se do fato de que os termos poesia e neurose sejam virtualmente sinônimos?



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