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NELSON ASCHER
Por que os poetas são neuróticos
A imagem contemporânea
dos poetas não está entre as
melhores. No Brasil e um pouco
em toda parte, eles são tidos como
truculentos, em especial quando
se trata das relações (negativamente) passionais que uns mantêm com quase todos os outros. Se
os versificadores têm, em geral, os
nervos à flor da pele, tal aflição
epidérmica (mas nada superficial) decorre menos da hipersensibilidade que lhes é equivocadamente atribuída do que de determinadas condições inerentes ao
ofício.
Quando, por exemplo, alguém
enche cem páginas com um texto
contínuo e, neste, discernem-se
personagens reconhecíveis desempenhando, por mais incoerente que se revele, tal ou qual
ação, isto é, se num prolongado
conglomerado de palavras se associam a certos substantivos próprios uns tantos verbos e/ou adjetivos mesmo que absolutamente
impróprios, o resultado será um
romance. Talvez esse seja horrendo, uma desonra para o gênero, o
pior romance jamais escrito. Ainda assim, será um romance e seu
autor, ou melhor, perpetrador,
quiçá seja o indivíduo mais indigno que um dia empunhou uma
pena de ganso ou catou às cegas
restos de milho num teclado, não
obstante ele ou ela fará jus ao título de romancista. Temos aqui,
sem dúvida, uma relação relativamente direta entre o produto
de um trabalho e o estatuto de seu
realizador. Quem escreva um romance é romancista. Se esse for
bom, ele também o é. Se ruim, ele
não deixa, no entanto, de ser um
romancista, se bem que possa ser
considerado um mau, detestável,
assustador praticante do gênero.
E pronto.
Com a poesia é diferente. Embora haja bons e maus poemas e,
consequentemente, bons e maus
poetas, existe algo pior, muito
pior: o não-poema composto pelo
não-poeta. E descomposto pelos
críticos. Carregar a fama de mau
poeta é embaraçoso, mas, depois
de ter tentado escrever poesia,
não conseguir nem sequer ser reconhecido como o pior poeta municipal, estadual ou nacional é
uma humilhação que, de tão irrecorrível, exigiria a rigor a solução
à qual os samurais recorrem em
situações idênticas.
Nem sempre foi assim. Houve
uma época em que os candidatos
a poeta dispunham de receitas
garantidas. Bastava alinhavar 14
decassílabos (preferencialmente
de pés não quebrados), rimá-los
de acordo com tal ou qual padrão
consagrado e arrematar o conjunto com uma frase de efeito, a
chave de ouro, e, presto, chegava-se não só a um soneto, como também a um sonetista. Recuando no
tempo, encontramos os escaldos
escandinavos e os bardos celtas
que, na Islândia ou na Irlanda
medievais submetiam-se anos a
fio a uma disciplina que faria
qualquer pós-doutorando em Letras empalidecer. Eles memorizavam quantidades pré-industriais
de poesia tradicional, aprendiam
a manejar dezenas de metros e
ritmos distintos aos quais se aplicavam diversos esquemas rímicos
e/ou aliterativos e eram também
iniciados nos mistérios da construção de imagens que, de tão
complexas, assemelhavam-se antes às fórmulas mágicas. Ao fim e
ao cabo, como não havia então
falta de reis no mercado, tanto
suor, sangue e lágrimas rendiam
aos escaldos e bardos uma merecida sinecura vitalícia em alguma
corte.
Acontece que, na medida em
que o número de monarcas diminuía, o de poetas crescia e se multiplicava, e atualmente a única
corte que emprega um laureado é
a britânica. Paralelamente, a própria poesia sofreu incontáveis
transformações, despedindo-se
das fórmulas garantidas, despindo-se das convenções explícitas e
adquirindo outras, tácitas ou implícitas que, de sobra, têm o péssimo hábito de mudar repentinamente, sem aviso prévio. Quem
quer que se aventure no labirinto
intricado de versos brancos, versos livres, poemas em prosa, poesia concreta, poesia marginal,
poemas-piada, imagens surrealistas, enumerações caóticas etc. tem
de levar consigo e desenovelar seu
próprio fio. E ninguém lhe promete que, no meio do caminho de
sua vida, esse não vá se emaranhar ou se romper. A primeira tarefa dos candidatos a poeta é a de
auscultarem, com o estetoscópio
que Deus lhes deu (ou não deu), o
tórax da produção contemporânea de modo a descobrirem quais
entre os pacientes seguem vivos e
saudáveis, quais estão moribundos e quais já reservaram sua gaveta no Instituto Médico Legal.
A liberdade conquistada é, antes de mais nada, a de errar. Os
acertos são poucos, difíceis e nem
sempre, aliás quase nunca, óbvios. E, malgrado tamanhas complexidades ou complicações, os
poemas de verdade são reconhecíveis a olho nu e, o que é mais
grave seja para os poetas, seja para os críticos profissionais, pelo
público leigo. O mesmo sucede
com o não-poema que denuncia e
expõe ao escárnio generalizado o
não-poeta. Diferentemente, portanto, dos outros gêneros literários, há um umbral que uma coleção de palavras precisa ultrapassar para que seja admitida enquanto um poema entre outros.
Os que se empenham nessa empresa, caso tenham consciência
do perigo envolvido, raramente
deixam de se perguntar, a cada
ponto final que colocam (nos textos pontuados de forma convencional, é claro), se acabaram ou
não de escrever um poema. E a
resposta não é dada de antemão.
Ela pode demorar. Ou não chegar
nunca. Talvez haja muitas respostas simultâneas só que mutuamente contraditórias. No intervalo, o máximo que o autor pode legitimamente dizer de si é que ele
ou ela escreve ou tenta escrever
poemas. São, em última instância, o público e o tempo que lhes
darão ou negarão o título honorífico de poeta. Como, nessas condições, admirar-se do fato de que os
termos poesia e neurose sejam
virtualmente sinônimos?
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