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CARLOS HEITOR CONY
Do dever cívico de outros tempos
Eu despia as bermudas e vestia calças -o dever cívico exige a mínima compostura das calças
DEPOIS DO tríduo momesco, o
que mais implico é com o dever cívico. Felizmente o Carnaval ainda não é obrigatório, mas o
voto -também conhecido pela alcunha de sufrágio popular-, além de
secreto e universal, é obrigatório,
tornando-se facultativo quando o cidadão ultrapassa os 70 anos e ingressa naquela marca do pênalti que
a qualquer momento pode chutá-lo
desta para pior. Como patriota obrigatório e cidadão compulsório (a polícia existe para isso mesmo), eu despia as bermudas e vestia calças -um
dever cívico, segundo os juízes eleitorais, exige a mínima compostura
das calças.
Não sei por que, ao pensar nas calças que vestia naquelas ocasiões,
lembrei-me de uma apuração de votos no Maracanã, nos tempos em
que não havia votação eletrônica,
cada candidato a cada cargo eletivo
encarregando-se de imprimir as
próprias cédulas.
Na hora da apuração, era o caos.
Conheci um juiz de junta apuradora
que foi surpreendido catando pedras em torno do Maracanã, a fim de
obter pesos que fixassem as cédulas
em cima das mesas.
Veio uma ventania e dispersou tudo, votos nulos e não nulos, deputados e vereadores bailaram no ar como aquele vaga-lume do Machado
de Assis -até que uma autoridade
deu o grito: "Ninguém tasca!". Os votos foram recolhidos da melhor forma, recontados e redistribuídos segundo cargos e partidos. Resultado:
naquela eleição, para ser mais exato,
naquela junta apuradora, o deputado estadual mais votado foi um tal
de Barcelos dos Parafusos. Não chegava a ser um candidato.
Era apenas um esforçado mecânico de carros que abrira uma loja em
Jacarepaguá e decidira distribuir
santinhos de seu negócio no meio
daquela multidão que civicamente
apurava os votos da coletividade.
Aliás, as eleições de antanho podiam não ser honestas, mas eram
obrigatoriamente divertidas. Figura
obrigatória dessas eleições obrigatórias era o cabo de polícia visivelmente embriagado. Personagem inarredável e ubíquo, aparecia em todas as
zonas, em todos os Estados onde os
resultados das urnas -o famoso veredicto- não agradava à oposição
ou ao governo. Variavam as legendas, os programas partidários, as
propostas de redenção pátria ou
municipal, mas o cabo de polícia visivelmente embriagado estava presente em todas as seções do território nacional. Era ele quem, visivelmente encachaçado, dava um tiro na
urna eleitoral por ocasião do recolhimento das ditas urnas.
O tiro não fazia vítimas nem chegava a prejudicar os votos, limitava-se a abrir um furo na lona que o Tribunal Eleitoral destinava a coletar
os justos anseios da população.
Com base nesse tiro e nesse cabo
-que era obrigatoriamente da polícia e embriagado- o partido que
sentia o cheiro da derrota pedia a
anulação do pleito, a demanda subia
às instâncias superiores e se misturava a outras demandas, entre as
quais figurava a da anulação da vitória dos candidatos eleitos pelo ostensivo e quase obrigatório voto dos
comunistas.
Nunca entendi como os 20 e tantos comunistas da praça pudessem
obrigatoriamente eleger sempre o
candidato vitorioso, fosse ele Juscelino ou Negrão, Milton Campos ou
Israel Pinheiro. Dou um exemplo:
quando da eleição de Negrão de Lima, na ex-Guanabara, o então governador Carlos Lacerda declarou
solenemente que o seu adversário
havia sido eleito pelos comunistas.
Eu havia votado no Negrão: descontando meu insignificante voto,
sobravam 582.025 comunistas ao
meu redor. Nesse dia andei cauteloso pelas ruas, aderente às paredes,
temendo uma dessas bordoadas gerais e saneadoras que costumam ceifar vítimas inocentes.
Há o precedente descrito por Shakespeare: depois do discurso de
Marco Antonio, a população saiu às
ruas para vingar a morte de César.
Era a hora do ajuste genérico: pegaram um ancião que procurava se escafeder, que protestou inocência,
chegou a declinar nome e função,
"sou o poeta Cila".
Não escapou da sanha popular: o
centurião que o justiçou não fez por
menos: matou-o por causa de "seus
maus versos".
Temendo um ajuste de contas semelhante, não adiantaria clamar
minha inocência. Qualquer que fosse o meu excelente voto, eu poderia
ser apunhalado por causa de maus
livros e maus artigos que insisto em
escrever. Como se vê, o dever cívico
comporta algum perigo, desde as
calças que nos obrigam a vestir até a
cautela de andar aderente às paredes. Mesmo assim, é preferível votar
do que receber a tutela das Forças
Armadas.
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