São Paulo, sexta-feira, 27 de outubro de 2006

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CARLOS HEITOR CONY

Do dever cívico de outros tempos

Eu despia as bermudas e vestia calças -o dever cívico exige a mínima compostura das calças

DEPOIS DO tríduo momesco, o que mais implico é com o dever cívico. Felizmente o Carnaval ainda não é obrigatório, mas o voto -também conhecido pela alcunha de sufrágio popular-, além de secreto e universal, é obrigatório, tornando-se facultativo quando o cidadão ultrapassa os 70 anos e ingressa naquela marca do pênalti que a qualquer momento pode chutá-lo desta para pior. Como patriota obrigatório e cidadão compulsório (a polícia existe para isso mesmo), eu despia as bermudas e vestia calças -um dever cívico, segundo os juízes eleitorais, exige a mínima compostura das calças.
Não sei por que, ao pensar nas calças que vestia naquelas ocasiões, lembrei-me de uma apuração de votos no Maracanã, nos tempos em que não havia votação eletrônica, cada candidato a cada cargo eletivo encarregando-se de imprimir as próprias cédulas.
Na hora da apuração, era o caos. Conheci um juiz de junta apuradora que foi surpreendido catando pedras em torno do Maracanã, a fim de obter pesos que fixassem as cédulas em cima das mesas.
Veio uma ventania e dispersou tudo, votos nulos e não nulos, deputados e vereadores bailaram no ar como aquele vaga-lume do Machado de Assis -até que uma autoridade deu o grito: "Ninguém tasca!". Os votos foram recolhidos da melhor forma, recontados e redistribuídos segundo cargos e partidos. Resultado: naquela eleição, para ser mais exato, naquela junta apuradora, o deputado estadual mais votado foi um tal de Barcelos dos Parafusos. Não chegava a ser um candidato.
Era apenas um esforçado mecânico de carros que abrira uma loja em Jacarepaguá e decidira distribuir santinhos de seu negócio no meio daquela multidão que civicamente apurava os votos da coletividade.
Aliás, as eleições de antanho podiam não ser honestas, mas eram obrigatoriamente divertidas. Figura obrigatória dessas eleições obrigatórias era o cabo de polícia visivelmente embriagado. Personagem inarredável e ubíquo, aparecia em todas as zonas, em todos os Estados onde os resultados das urnas -o famoso veredicto- não agradava à oposição ou ao governo. Variavam as legendas, os programas partidários, as propostas de redenção pátria ou municipal, mas o cabo de polícia visivelmente embriagado estava presente em todas as seções do território nacional. Era ele quem, visivelmente encachaçado, dava um tiro na urna eleitoral por ocasião do recolhimento das ditas urnas.
O tiro não fazia vítimas nem chegava a prejudicar os votos, limitava-se a abrir um furo na lona que o Tribunal Eleitoral destinava a coletar os justos anseios da população.
Com base nesse tiro e nesse cabo -que era obrigatoriamente da polícia e embriagado- o partido que sentia o cheiro da derrota pedia a anulação do pleito, a demanda subia às instâncias superiores e se misturava a outras demandas, entre as quais figurava a da anulação da vitória dos candidatos eleitos pelo ostensivo e quase obrigatório voto dos comunistas.
Nunca entendi como os 20 e tantos comunistas da praça pudessem obrigatoriamente eleger sempre o candidato vitorioso, fosse ele Juscelino ou Negrão, Milton Campos ou Israel Pinheiro. Dou um exemplo: quando da eleição de Negrão de Lima, na ex-Guanabara, o então governador Carlos Lacerda declarou solenemente que o seu adversário havia sido eleito pelos comunistas.
Eu havia votado no Negrão: descontando meu insignificante voto, sobravam 582.025 comunistas ao meu redor. Nesse dia andei cauteloso pelas ruas, aderente às paredes, temendo uma dessas bordoadas gerais e saneadoras que costumam ceifar vítimas inocentes.
Há o precedente descrito por Shakespeare: depois do discurso de Marco Antonio, a população saiu às ruas para vingar a morte de César. Era a hora do ajuste genérico: pegaram um ancião que procurava se escafeder, que protestou inocência, chegou a declinar nome e função, "sou o poeta Cila".
Não escapou da sanha popular: o centurião que o justiçou não fez por menos: matou-o por causa de "seus maus versos".
Temendo um ajuste de contas semelhante, não adiantaria clamar minha inocência. Qualquer que fosse o meu excelente voto, eu poderia ser apunhalado por causa de maus livros e maus artigos que insisto em escrever. Como se vê, o dever cívico comporta algum perigo, desde as calças que nos obrigam a vestir até a cautela de andar aderente às paredes. Mesmo assim, é preferível votar do que receber a tutela das Forças Armadas.


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