São Paulo, sábado, 27 de outubro de 2007

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Crítica/"Sobre a Beleza"

Zadie Smith atualiza Inglaterra vitoriana na Costa Oeste dos EUA

Em "Sobre a Beleza", britânica realiza interessante jogo de atualização da ficção de E. M. Forster, de "Howards End"

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não é fácil ser um romancista inglês nos dias de hoje. Encarar a sólida tradição narrativa da língua de Dickens e ainda por cima ombrear-se com escritores da notável geração anterior em pleno auge criativo, como Ian McEwan, Julian Barnes e Martin Amis, merecia advertência com o sinal vermelho "Cuidado - campo minado". Não é o que pensa Zadie Smith em "Sobre a Beleza", seu terceiro romance, fingindo-se de míope e permanecendo milagrosamente ilesa após desviar das bombas. O Orange Prize não fez vista grossa aos seus esforços, premiando o livro em 2005.
Destemida, a autora britânica de 32 anos rende homenagem a E. M. Forster (1879-1970), o autor de "Uma Passagem para a Índia" e "Howards End", entre outros clássicos, tornados ainda mais célebres pelas adaptações cinematográficas realizadas por David Lean e James Ivory. Proveniente do grupo de Bloomsbury e nascido em 1879, Forster se notabilizou por tratar das relações surgidas entre pessoas de classes distintas e dos dramas morais advindos da impropriedade desses contatos, em geral iniciados e soberbamente arruinados pelo amor.
Em "Sobre a Beleza" não é diferente. Transferindo o campo de ação da Inglaterra vitoriana para o ardiloso meio acadêmico (não menos aristocrático) de Wellington, cidadezinha universitária ao lado de Boston na Costa Oeste norte-americana, Smith promove o encontro entre duas famílias dissímeis, os democratas meio caídos Belsey e os republicanos pra lá de esnobes Kipps (assim como em "Howards End", publicado em 1910, são os Schlegel versus os Wilcox).

Narrativa de E. M. Forster
E todos os mecanismos narrativos característicos de Forster dizem presente, desde o casarão vitoriano herdado por alguém em dado momento ao súbito irromper do joão-ninguém para encardir os lençóis de linho familiares: se as nódoas originais são deixadas pelo clérigo pobretão Leonard Bast, as da homenagem pertencem ao rapper Carl.
Até mesmo a troca indevida de objetos que aproxima Carl de Zora Belsey (ela pega inadvertidamente o discman dele durante um recital de Mozart, enquanto Hellen Schlegel carrega o guarda-chuva de Leonard após uma palestra sobre Beethoven) ou mesmo a aproximação constrangedora entre membros das famílias rivais devem-se ao interessante jogo de atualização e reinvenção dos "leitmotiv" ficcionais de Forster, fornecendo diversão em dobro ao leitor atento.
Não se trata, entretanto, de mera paródia ou daquelas homenagens formais e respeitosas em excesso a ponto de não terem estofo próprio. Apoiada nos tiques narrativos de E. M. Forster, Zadie Smith insufla vida em personagens como a inesquecível matrona dos Belsey, Kiki, uma pedestre num ninho de intelectuais, ou o caribenho Sir Montague Kipps, conservador e politiqueiro. Em meio aos conflitos de inserção social de duas famílias, ambas negras, está o patriarca Howard Belsey, o único e incrédulo branco em toda essa embrulhada. Com bases fundadas na tradição, Zadie Smith cria literatura baseada também numa outra história, a da família.


JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de "Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da Palavra).


SOBRE A BELEZA
Autora: Zadie Smith
Tradução: Daniel Galera
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 58 (448 págs.)
Avaliação: ótimo
NA INTERNET - Leia trecho www.folha.com.br/072881



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