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Crítica/"Sobre a Beleza"
Zadie Smith atualiza Inglaterra vitoriana na Costa Oeste dos EUA
Em "Sobre a Beleza", britânica realiza interessante jogo de atualização da ficção de E. M. Forster, de "Howards End"
JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA
Não é fácil ser um romancista inglês nos
dias de hoje. Encarar a
sólida tradição narrativa da língua de Dickens e ainda por cima ombrear-se com escritores
da notável geração anterior em
pleno auge criativo, como Ian
McEwan, Julian Barnes e Martin Amis, merecia advertência
com o sinal vermelho "Cuidado
- campo minado". Não é o que
pensa Zadie Smith em "Sobre a
Beleza", seu terceiro romance,
fingindo-se de míope e permanecendo milagrosamente ilesa
após desviar das bombas. O
Orange Prize não fez vista grossa aos seus esforços, premiando
o livro em 2005.
Destemida, a autora britânica de 32 anos rende homenagem a E. M. Forster (1879-1970), o autor de "Uma Passagem para a Índia" e "Howards
End", entre outros clássicos,
tornados ainda mais célebres
pelas adaptações cinematográficas realizadas por David Lean
e James Ivory. Proveniente do
grupo de Bloomsbury e nascido
em 1879, Forster se notabilizou
por tratar das relações surgidas
entre pessoas de classes distintas e dos dramas morais advindos da impropriedade desses
contatos, em geral iniciados e
soberbamente arruinados pelo
amor.
Em "Sobre a Beleza" não é diferente. Transferindo o campo
de ação da Inglaterra vitoriana
para o ardiloso meio acadêmico
(não menos aristocrático) de
Wellington, cidadezinha universitária ao lado de Boston na
Costa Oeste norte-americana,
Smith promove o encontro entre duas famílias dissímeis, os
democratas meio caídos Belsey
e os republicanos pra lá de esnobes Kipps (assim como em
"Howards End", publicado em
1910, são os Schlegel versus os
Wilcox).
Narrativa de E. M. Forster
E todos os mecanismos narrativos característicos de Forster dizem presente, desde o casarão vitoriano herdado por alguém em dado momento ao súbito irromper do joão-ninguém
para encardir os lençóis de linho familiares: se as nódoas
originais são deixadas pelo clérigo pobretão Leonard Bast, as
da homenagem pertencem ao
rapper Carl.
Até mesmo a troca indevida
de objetos que aproxima Carl
de Zora Belsey (ela pega inadvertidamente o discman dele
durante um recital de Mozart,
enquanto Hellen Schlegel carrega o guarda-chuva de Leonard após uma palestra sobre
Beethoven) ou mesmo a aproximação constrangedora entre
membros das famílias rivais
devem-se ao interessante jogo
de atualização e reinvenção dos
"leitmotiv" ficcionais de Forster, fornecendo diversão em
dobro ao leitor atento.
Não se trata, entretanto, de
mera paródia ou daquelas homenagens formais e respeitosas em excesso a ponto de não
terem estofo próprio. Apoiada
nos tiques narrativos de E. M.
Forster, Zadie Smith insufla vida em personagens como a
inesquecível matrona dos Belsey, Kiki, uma pedestre num ninho de intelectuais, ou o caribenho Sir Montague Kipps,
conservador e politiqueiro.
Em meio aos conflitos de inserção social de duas famílias,
ambas negras, está o patriarca
Howard Belsey, o único e incrédulo branco em toda essa embrulhada. Com bases fundadas
na tradição, Zadie Smith cria literatura baseada também numa outra história, a da família.
JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de
"Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da
Palavra).
SOBRE A BELEZA
Autora: Zadie Smith
Tradução: Daniel Galera
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 58 (448 págs.)
Avaliação: ótimo
NA INTERNET - Leia trecho
www.folha.com.br/072881
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