São Paulo, Sábado, 27 de Novembro de 1999


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WALTER SALLES
Alguma luz no meio do caos

O olhar é agudo. O aperto de mão é franco, sem subterfúgio. A AR-15 repousa a seu lado, o cano apontado para o céu. Não é cinema. Reencontro C., líder de um morro na zona norte do Rio. Aqui rodamos um documentário e parte de um filme de ficção. Vim acompanhar um amigo francês, crítico de cinema. O estrangeiro, coisa rara, não subiu o morro com uma visão acabada, não veio comprovar uma tese preestabelecida. Veio ouvir.
C. olha o visitante com curiosidade. "Já que você é francês, o que você achou do filme "O Ódio?'" Traduzo. A reação é de incredulidade. "Ele conhece "O Ódio", não é possível." C. sorri imperceptivelmente. Olhos nos olhos, quero ver o que você diz, estrangeiro. "Acho melhor você acertar a resposta", brinco. Como em "O Passageiro - Profissão: Repórter", de Antonioni, entrevistador e entrevistado trocam de posição. "Bem, achei o filme extremamente interessante, fiel ao confronto que existe entre os marginalizados e os representantes da ordem na França", salva-se meu amigo.
C. concorda. Território comum delimitado. Emenda: "É muito melhor que "New Jack City - A Gang Brutal", aquela porcaria americana. Em "O Ódio", saquei pela primeira vez que a nossa situação aqui é parecida com a que existe na França, que os jovens da periferia de lá vivem na mesma merda que nós vivemos aqui".
Duas semanas mais tarde. A jovem mendiga negra sentada no chão do Soho, em Nova York, concordaria com a tese. Segura uma placa em que se lê uma palavra apenas: "Fucked" (fodida).
Caminho com Junot Díaz, autor de "Afogado" ("Drown", publicado recentemente pela Record). Um primeiro livro de contos tão devastador que mesmo a conservadora imprensa norte-americana foi obrigada a reconhecer Díaz como a grande revelação literária do ano passado. Junot nasceu na República Dominicana. Imigrou para os EUA aos 7 anos de idade. Hoje tem 30. Seus personagens são exilados que não pertencem mais a lugar nenhum.
Misturam espanhol e inglês, inventam uma nova língua. Sua prosa vertiginosa é feita de desejo e frustração, humor cáustico e infinito ceticismo. Uma das vozes mais viscerais da sua geração.
Conto a ele a história de C. "Ele tem toda razão", diz Junot. "Mais e mais pessoas estão se tornando desintegradas no mundo inteiro. É como madeira seca esperando para pegar fogo." Globalização da margem. Ou o ovo da serpente. "Isso não muda facilmente. Eu nunca vi ninguém nos Estados Unidos abrir mão do poder ou de seus privilégios de graça." Penso no Brasil, prestes a festejar 500 anos de imobilismo social.
Na entrevista de Mano Brown na revista "Trip": "Essa porra de Brasil não tem saída se não for pela força. Só pela força". E nos versos de Adão, compositor do morro do Cantagalo, zona sul do Rio: "Hoje ninguém prende quem trafica salário mínimo, que é droga que intoxica. Nem Freud explica... Corruptos são inimigos número 1, eu não os vejo na Bangu 1".
Junot também não contemporiza. Acha que a única maneira de um latino ser respeitado nos Estados Unidos é se equiparando aos que detêm o poder. Pergunto se o fato de as portas estarem se abrindo na área da literatura para um escritor da República Dominicana, como ele, não é em si um sinal de mudança. Vários realizadores negros de cinema também surgiram no vácuo de Spike Lee, incluindo o seu sobrinho Malcom, que acaba de lançar neste mês o seu primeiro longa nos Estados Unidos, "The Best Man".
Lembro-me também do escritor indígena Sherman Alexie, autor de "Smoke Signals", o livro que deu origem ao primeiro filme dirigido por um índio americano, Chris Eyre. Ainda somos exceções, responde Junot, uma aparência de representatividade, a abertura suficiente na panela para que o caldo não entorne.
Junot tem razão. Mas talvez seja necessário manter um certo otimismo -nem que seja por originalidade. Embora limitado, o acesso que temos a narrativas diferenciadas, vindas de culturas não dominantes, nos mostra que a realidade é bem mais complexa do que tentam nos vender.
Aprendemos, por exemplo, que o Irã não é apenas o país sectário descrito pela CNN graças aos filmes de Kiarostami. Filmes, livros como "Afogado", ajudam a entender o outro, nos tornam mais tolerantes. "Espero que sim, mas não tenho certeza. Minha família católica vai me matar, mas não creio que os homens sejam animais essencialmente tolerantes. Novamente, só se respeitam em posição de igualdade, de força", diz Junot.
Concordamos num ponto: melhor a proibição de venda e porte de armas da Inglaterra do que a escalada suicida americana. Defendida, aliás, pela N.R.A., a Associação Americana de Rifles, poderosa organização de extrema direita encabeçada por Charlton Heston. Sintomaticamente, aquele do planeta dos macacos.
Cá estamos. A globalização "mcdonaldizou" os costumes, desnacionalizou as economias regionais, criou um exército de deserdados que gravitam em latitudes diferentes, mas se reconhecem à distância. A reação na área cultural começa a tomar corpo agora, vinda sintomaticamente dos bolsões mais atingidos pelo desequilíbrio econômico.
Há sinais por toda parte. No rap e no hip hop (como em "Traficando Informação", de M.V. Bill, ou "Minha Alma, A Paz que Eu não Quero", de O Rappa). Na prosa reveladora de Paulo Lins, no seu importantíssimo "Cidade de Deus". Ou na voz cortante de Junot Díaz. Eles representam uma luz no meio do caos. São a expressão de um movimento orgânico, vindo de dentro para fora, que não existia há dez anos. O novo.
De volta à zona norte. C. olha para o amigo francês, fala com a calma dos predestinados: "Queria ter estudado desenho, não pude. Sou o que sou e não deixo de ter orgulho do que faço. Mas não quero que meu filho siga os meus passos. Quero que ele seja respeitado de alguma outra maneira".
Descemos o morro. Conduzo o estrangeiro até o aeroporto. Ficamos em silêncio, até o último aperto de mão. Do outro lado do oceano, outros Cs o esperam.


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