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WALTER SALLES
Alguma luz no meio do caos
O olhar é agudo. O aperto de
mão é franco, sem subterfúgio. A
AR-15 repousa a seu lado, o cano
apontado para o céu. Não é cinema. Reencontro C., líder de um
morro na zona norte do Rio. Aqui
rodamos um documentário e parte de um filme de ficção. Vim
acompanhar um amigo francês,
crítico de cinema. O estrangeiro,
coisa rara, não subiu o morro com
uma visão acabada, não veio
comprovar uma tese preestabelecida. Veio ouvir.
C. olha o visitante com curiosidade. "Já que você é francês, o que
você achou do filme "O Ódio?'"
Traduzo. A reação é de incredulidade. "Ele conhece "O Ódio", não é
possível." C. sorri imperceptivelmente. Olhos nos olhos, quero ver
o que você diz, estrangeiro. "Acho
melhor você acertar a resposta",
brinco. Como em "O Passageiro -
Profissão: Repórter", de Antonioni, entrevistador e entrevistado
trocam de posição. "Bem, achei o
filme extremamente interessante,
fiel ao confronto que existe entre
os marginalizados e os representantes da ordem na França", salva-se meu amigo.
C. concorda. Território comum
delimitado. Emenda: "É muito
melhor que "New Jack City - A
Gang Brutal", aquela porcaria
americana. Em "O Ódio", saquei
pela primeira vez que a nossa situação aqui é parecida com a que
existe na França, que os jovens da
periferia de lá vivem na mesma
merda que nós vivemos aqui".
Duas semanas mais tarde. A jovem mendiga negra sentada no
chão do Soho, em Nova York, concordaria com a tese. Segura uma
placa em que se lê uma palavra
apenas: "Fucked" (fodida).
Caminho com Junot Díaz, autor
de "Afogado" ("Drown", publicado recentemente pela Record).
Um primeiro livro de contos tão
devastador que mesmo a conservadora imprensa norte-americana foi obrigada a reconhecer Díaz
como a grande revelação literária
do ano passado. Junot nasceu na
República Dominicana. Imigrou
para os EUA aos 7 anos de idade.
Hoje tem 30. Seus personagens são
exilados que não pertencem mais
a lugar nenhum.
Misturam espanhol e inglês, inventam uma nova língua. Sua
prosa vertiginosa é feita de desejo
e frustração, humor cáustico e infinito ceticismo. Uma das vozes
mais viscerais da sua geração.
Conto a ele a história de C. "Ele
tem toda razão", diz Junot. "Mais
e mais pessoas estão se tornando
desintegradas no mundo inteiro.
É como madeira seca esperando
para pegar fogo." Globalização da
margem. Ou o ovo da serpente.
"Isso não muda facilmente. Eu
nunca vi ninguém nos Estados
Unidos abrir mão do poder ou de
seus privilégios de graça." Penso
no Brasil, prestes a festejar 500
anos de imobilismo social.
Na entrevista de Mano Brown
na revista "Trip": "Essa porra de
Brasil não tem saída se não for pela força. Só pela força". E nos versos de Adão, compositor do morro
do Cantagalo, zona sul do Rio:
"Hoje ninguém prende quem trafica salário mínimo, que é droga
que intoxica. Nem Freud explica...
Corruptos são inimigos número 1,
eu não os vejo na Bangu 1".
Junot também não contemporiza. Acha que a única maneira de
um latino ser respeitado nos Estados Unidos é se equiparando aos
que detêm o poder. Pergunto se o
fato de as portas estarem se abrindo na área da literatura para um
escritor da República Dominicana, como ele, não é em si um sinal
de mudança. Vários realizadores
negros de cinema também surgiram no vácuo de Spike Lee, incluindo o seu sobrinho Malcom,
que acaba de lançar neste mês o
seu primeiro longa nos Estados
Unidos, "The Best Man".
Lembro-me também do escritor
indígena Sherman Alexie, autor
de "Smoke Signals", o livro que
deu origem ao primeiro filme dirigido por um índio americano,
Chris Eyre. Ainda somos exceções,
responde Junot, uma aparência
de representatividade, a abertura
suficiente na panela para que o
caldo não entorne.
Junot tem razão. Mas talvez seja
necessário manter um certo otimismo -nem que seja por originalidade. Embora limitado, o
acesso que temos a narrativas diferenciadas, vindas de culturas
não dominantes, nos mostra que
a realidade é bem mais complexa
do que tentam nos vender.
Aprendemos, por exemplo, que
o Irã não é apenas o país sectário
descrito pela CNN graças aos filmes de Kiarostami. Filmes, livros
como "Afogado", ajudam a entender o outro, nos tornam mais
tolerantes. "Espero que sim, mas
não tenho certeza. Minha família
católica vai me matar, mas não
creio que os homens sejam animais essencialmente tolerantes.
Novamente, só se respeitam em
posição de igualdade, de força",
diz Junot.
Concordamos num ponto: melhor a proibição de venda e porte
de armas da Inglaterra do que a
escalada suicida americana. Defendida, aliás, pela N.R.A., a Associação Americana de Rifles, poderosa organização de extrema direita encabeçada por Charlton
Heston. Sintomaticamente, aquele do planeta dos macacos.
Cá estamos. A globalização
"mcdonaldizou" os costumes, desnacionalizou as economias regionais, criou um exército de deserdados que gravitam em latitudes
diferentes, mas se reconhecem à
distância. A reação na área cultural começa a tomar corpo agora,
vinda sintomaticamente dos bolsões mais atingidos pelo desequilíbrio econômico.
Há sinais por toda parte. No rap
e no hip hop (como em "Traficando Informação", de M.V. Bill, ou
"Minha Alma, A Paz que Eu não
Quero", de O Rappa). Na prosa
reveladora de Paulo Lins, no seu
importantíssimo "Cidade de
Deus". Ou na voz cortante de Junot Díaz. Eles representam uma
luz no meio do caos. São a expressão de um movimento orgânico,
vindo de dentro para fora, que
não existia há dez anos. O novo.
De volta à zona norte. C. olha
para o amigo francês, fala com a
calma dos predestinados: "Queria
ter estudado desenho, não pude.
Sou o que sou e não deixo de ter
orgulho do que faço. Mas não
quero que meu filho siga os meus
passos. Quero que ele seja respeitado de alguma outra maneira".
Descemos o morro. Conduzo o
estrangeiro até o aeroporto. Ficamos em silêncio, até o último
aperto de mão. Do outro lado do
oceano, outros Cs o esperam.
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