São Paulo, segunda-feira, 27 de novembro de 2000

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ARIANO SUASSUNA

Guimarães Rosa e Eu


ALMANAQUE ARMORIALGrande Logogrifo Brasileiro da Arte, do Real e da Beleza, contendo idéias, enigmas, lembranças, informações, comentários e a narração de casos acontecidos ou inventados, escritos em prosa e verso e reunidos, num Livro Negro do Cotidiano, pelo Bacharel em Filosofia e Licenciado em Artes Ariano Suassuna



LEMBRANÇA DE UM GRANDE ESCRITOR

"No tempo em que, ao lado de Raimundo Faoro e outros, pertenci ao Conselho Federal de Cultura, o lugar que me foi designado para sentar-me à mesa dos trabalhos ficava entre Rachel de Queiroz e João Guimarães Rosa. E como fui sempre meio dado a augúrios, vi nisso uma pedra do meu Destino: era como eu tivesse obtido a honra de ficar ladeado pelo Sertão do Nordeste e pelo Sertão de Minas, entre O Quinze e o Grande Sertão".
As palavras que acabo de transcrever iniciam um texto que publiquei em 1970 e que resolvi republicar agora a propósito da bela e generosa carta que José Silveira da Rosa Filho dirigiu à Folha sobre o Almanaque da semana passada. Naquele texto eu continuava:
"Nas reuniões do Conselho, mesmo quando se discutiam os graves assuntos da Cultura nacional, não deixavam de aparecer momentos de descanso ou de comentários amenos tecidos por nós.
"Nesses momentos, de vez em quando, tanto Rachel de Queiroz quanto Guimarães Rosa costumavam passar bilhetes para mim, comentando algum incidente ou dando alguma opinião sobre os acontecimentos do dia.
"Ambos eram agudos e líricos. Mas a poesia dos escritos de Rachel de Queiroz era clássica, pura e forte, como a sua admirável prosa das crônicas. A de Guimarães Rosa era complicada e sinuosa, como uma Mata mineira coberta de Cipós e parasitas.
"Um dia, tendo recebido de presente a nova edição de Sagarana e a primeira de Tutaméia que acabara de sair, passei para Guimarães Rosa um bilhete no qual dizia que as duas dedicatórias que ele tinha escrito configuravam uma espécie de poesia de circunstância.
"Ele tomou os dois volumes com ar curioso, releu o que escrevera e, na mesma hora, assumindo a expressão aplicada e concentrada que parecia ser a sua quando escrevia, pegou uma frase aqui, outra ali, colou e transportou, passando-me então o seguinte poema:
"A Ariano Suassuna:
"Em tempo duro ou tranquilo, Riobaldo abraça João Grilo. E já que a arte é vera e una, o Rosa abraça o Suassuna!
"Aqui, d'El-Suassuna! Oh grande Ariano, meu e de todos! Irmão, sansão, gedeão, campeão dos vivíssimos textos recitáveis, mistérios claros, apogeus vivenciados (e do Gato que descome dinheiro).
"Suassuna dito, bendito, colhedor de aplausos, jardim do mato regado a orvalho, Rei do quinto naipe do baralho e Chefe de roteiros, capaz de guardar coisas bem raras na lembrança e no coração da gente -principalmente deste seu, em afeto e abraço- Guimarães Rosa".
"É, como se vê, um simples poema de circunstância, cheio de alusões pessoais, indecifráveis para os outros.
"Novamente, porém, com o temperamento impressionável que tenho, tudo isso me tocou profundamente. Aqui, d'El-Suassuna era a expressão com que João Guimarães Rosa me saudava sempre que me via, e a qual eu respondia sempre Aqui, d'El Rosa. Porque, para mim, com a admiração que eu tinha por ele, era como se eu dissesse Aqui, d'El-Rei".
"O que mais me impressionou, porém, no poema, foi o fato de Guimarães Rosa nele me chamar de Rei do quinto naipe do baralho e Chefe de roteiros. Primeiro, porque um personagem que carrego comigo de 1958 para cá (Quaderna), é impressionado, entre outras coisas, com a Astrologia e com o jogo do Baralho (...). Por outro lado, sendo mais moço do que ele, aquilo, para mim, era como se Guimarães Rosa estivesse me dando, com esporas de Cavaleiro, permissão para montar e cavalgar, não seguindo seus passos, mas por minha própria Estrada".
Assim, quero esclarecer a José Silveira da Rosa Filho que estou de acordo com o grande Guimarães Rosa, quando ele afirmava que era um escritor e por isso pensava era "na ressurreição do homem". Como ele, também "acredito no homem e lhe desejo um futuro". Mas discordava e discordo de Rosa num ponto: não concordo com o absenteísmo que o levou a sair da sala, em Gênova, no momento de se discutir o compromisso político do escritor.
A meu ver, a visão de um sonho maior e mais belo para o futuro não nos exime do dever de refletir, escrever e lutar na arena do nosso tempo, na tentativa de, na medida de nossas poucas forças, trazer um pouco daquele belo futuro ao nosso atormentado presente.
Espero, entretanto, que meu texto de 1970 deixe claro que nunca tal discordância afetou, no mínimo que fosse, a amizade e a admiração que me ligavam à grande figura humana e ao escritor de gênio que foi João Guimarães Rosa.



Continua na próxima semana.




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