São Paulo, domingo, 27 de novembro de 2005

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ANÁLISE

"Cinema, Aspirinas e Urubus" une forma e geografia

WALTER SALLES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando nasceram os filmes de estrada? Em Homero, no desejo de Ulysses retornar à casa? Nos primeiros documentários de cineastas-viajantes como Robert Flaherty? Na influência dos fotógrafos humanistas que, como Cartier-Bresson, cruzaram fronteiras para entender como viviam os outros, aqueles que não faziam parte de sua própria cultura?
Provavelmente, em todas essas origens. Filmes de estrada são a extensão de uma condição que é intrínseca ao homem, a do nomadismo. Mas nem todos os filmes de estrada são iguais. Há infinitas correntes. Dentre elas, há aquelas que revelam um desconforto com uma identidade nacional em mutação, como "No Decurso do Tempo" (1976), de Wim Wenders. Há aquelas que acompanham a crise existencial de um personagem, como em "Flores Partidas", de Jim Jarmusch. E há filmes em que essas duas tendências se mesclam, em que os personagens agem e derivam por causa de suas próprias indagações mas também porque a história se encarrega de alterar seus destinos. É o caso de "Cinema, Aspirinas e Urubus", o ótimo filme de estréia de Marcelo Gomes.
Interior de Pernambuco, início dos anos 40. Johann (Peter Ketnath) é um comerciante alemão que foge da guerra em seu país. Vende aspirinas na estrada, apoiado numa novidade tecnológica: o cinema. Exibe filmes de graça para os povoados, precedidos de comerciais... de aspirina.
Ranulfo (João Miguel) é um sertanejo que tenta escapar do sertão para sobreviver. Mas não é o personagem-arquétipo dos filmes sobre o Nordeste.
Pode não ser um forte, mas sabe se virar. É cáustico, tem um humor desconstrutivo, sabe observar. Por alguns dias, as suas histórias vão se cruzar. "Cinema, Aspirinas e Urubus" se justifica nessa convergência, baseada em duas formas diferentes de descobrimento. Primeiro, o do outro, daquele que é diferente de você. Mas há também o descobrimento do cinema, da misteriosa relação entre sons e imagens. É um filme sobre uma pátria, a do cinema, mas também um filme sobre uma "fratria" possível, aquela em que a diferença é desejada e aceita.
Tão importante quanto esse achado narrativo é a forma pela qual Marcelo Gomes optou para contar a sua história. Desde que Nelson Pereira dos Santos e Luiz Carlos Barreto, sob a influência de José Medeiros, reinterpretaram a luz brasileira em "Vidas Secas", não se via uma tradução tão orgânica do calor e da aridez do sertão no cinema. Sente-se na pele como é viver naquela geografia. Da mesma forma, os não-atores que contracenam com os dois personagens centrais adensam a trama e ajudam a torná-la específica.
"Cinema, Aspirinas e Urubus" revela ao mesmo tempo um diretor cheio de talento (Marcelo Gomes), um ator luminoso (João Miguel), um fotógrafo de mão cheia (Mauro Pinheiro). Tudo certo, portanto? Não. Foram necessários sete anos para que o filme se tornasse realidade. Ora, uma cinematografia só se torna realmente representativa quando os mestres continuam a filmar com freqüência e quando os jovens cineastas chegam com constância para oxigenar a narrativa.
No Brasil, isso não acontece com a regularidade possível ou desejada. "Cinema, Aspirinas e Urubus" é, nesse sentido, ao mesmo tempo a prova do talento que existe para cinema no Brasil e a evidência de que o nosso atual modelo de produção precisa urgentemente ser revisto.


O cineasta Walter Salles é diretor de "Abril Despedaçado", "Central do Brasil" e "Água Negra", entre outros

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