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ANÁLISE
"Cinema, Aspirinas e Urubus" une forma e geografia
WALTER SALLES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quando nasceram os filmes
de estrada? Em Homero, no
desejo de Ulysses retornar à casa?
Nos primeiros documentários de
cineastas-viajantes como Robert
Flaherty? Na influência dos fotógrafos humanistas que, como
Cartier-Bresson, cruzaram fronteiras para entender como viviam
os outros, aqueles que não faziam
parte de sua própria cultura?
Provavelmente, em todas essas
origens. Filmes de estrada são a
extensão de uma condição que é
intrínseca ao homem, a do nomadismo. Mas nem todos os filmes
de estrada são iguais. Há infinitas
correntes. Dentre elas, há aquelas
que revelam um desconforto com
uma identidade nacional em mutação, como "No Decurso do
Tempo" (1976), de Wim Wenders. Há aquelas que acompanham a crise existencial de um
personagem, como em "Flores
Partidas", de Jim Jarmusch. E há
filmes em que essas duas tendências se mesclam, em que os personagens agem e derivam por causa
de suas próprias indagações mas
também porque a história se encarrega de alterar seus destinos. É
o caso de "Cinema, Aspirinas e
Urubus", o ótimo filme de estréia
de Marcelo Gomes.
Interior de Pernambuco, início
dos anos 40. Johann (Peter Ketnath) é um comerciante alemão
que foge da guerra em seu país.
Vende aspirinas na estrada,
apoiado numa novidade tecnológica: o cinema. Exibe filmes de
graça para os povoados, precedidos de comerciais... de aspirina.
Ranulfo (João Miguel) é um sertanejo que tenta escapar do sertão
para sobreviver. Mas não é o personagem-arquétipo dos filmes
sobre o Nordeste.
Pode não ser um forte, mas sabe
se virar. É cáustico, tem um humor desconstrutivo, sabe observar. Por alguns dias, as suas histórias vão se cruzar. "Cinema, Aspirinas e Urubus" se justifica nessa
convergência, baseada em duas
formas diferentes de descobrimento. Primeiro, o do outro, daquele que é diferente de você. Mas
há também o descobrimento do
cinema, da misteriosa relação entre sons e imagens. É um filme sobre uma pátria, a do cinema, mas
também um filme sobre uma
"fratria" possível, aquela em que a
diferença é desejada e aceita.
Tão importante quanto esse
achado narrativo é a forma pela
qual Marcelo Gomes optou para
contar a sua história. Desde que
Nelson Pereira dos Santos e Luiz
Carlos Barreto, sob a influência de
José Medeiros, reinterpretaram a
luz brasileira em "Vidas Secas",
não se via uma tradução tão orgânica do calor e da aridez do sertão
no cinema. Sente-se na pele como
é viver naquela geografia. Da mesma forma, os não-atores que contracenam com os dois personagens centrais adensam a trama e
ajudam a torná-la específica.
"Cinema, Aspirinas e Urubus"
revela ao mesmo tempo um diretor cheio de talento (Marcelo Gomes), um ator luminoso (João
Miguel), um fotógrafo de mão
cheia (Mauro Pinheiro). Tudo
certo, portanto? Não. Foram necessários sete anos para que o filme se tornasse realidade. Ora,
uma cinematografia só se torna
realmente representativa quando
os mestres continuam a filmar
com freqüência e quando os jovens cineastas chegam com constância para oxigenar a narrativa.
No Brasil, isso não acontece
com a regularidade possível ou
desejada. "Cinema, Aspirinas e
Urubus" é, nesse sentido, ao mesmo tempo a prova do talento que
existe para cinema no Brasil e a
evidência de que o nosso atual
modelo de produção precisa urgentemente ser revisto.
O cineasta Walter Salles é diretor de
"Abril Despedaçado", "Central do Brasil"
e "Água Negra", entre outros
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