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FERREIRA GULLAR
Paraíso
Paraíso era uma cidade injusta e rica, mas, em comparação com muitas outras, quase
podia se orgulhar de ser menos
desigual. Ainda assim, essa era
uma questão permanentemente
debatida pelos sociólogos, filósofos e políticos de Paraíso, que,
simplificando, se dividiam em
duas facções: a dos que exigiam
medidas urgentes para eliminar
de vez a desigualdade e a daqueles para quem a cidade justa era
uma bela utopia, mas irrealizável, pois, como escrevera um poeta famoso, "a visão da justiça é
um prazer somente de Deus". Ao
que outros retrucaram, afirmando que poetas não sabem o que
dizem e, portanto, não devem ser
levados a sério.
Tal afirmação provocou a indignação de alguns vates, que enviaram aos jornais uma carta
aberta exigindo que os defensores
da cidade justa se retratassem.
Mas essa carta foi desautorizada
por outra, assinada também por
poetas, afirmando que poetas não
devem se imiscuir em política. De
qualquer modo, o debate sobre a
cidade injusta continuou sem que
se chegasse a um acordo nem a
qualquer conclusão.
Mas, enquanto isso, a cidade
crescia e mudava. Moradores de
cidades distantes, onde a pobreza
era grande e a desigualdade muito maior do que em Paraíso, migravam em busca de emprego e
melhores condições de vida. No
começo, essa migração mal foi
percebida, mesmo porque atendia aos interesses de uma parte
dos empresários de Paraíso, que
passaram a dispor de mão-de-obra barata e de empregados que
não lhes exigiam o cumprimento
das obrigações trabalhistas; era
ilegal, mas benéfico para a economia, que já se ressentia de tantos
direitos conquistados pelos trabalhadores.
Assim, graças à esperteza de uns
e à submissão de outros, a migração foi bem aceita, até se tornar
inconveniente, quando os migrados passaram a ocupar uma faixa
maior do mercado de trabalho.
Surgiu, então, uma corrente de
opinião, com apoio de alguns sindicatos, hostil aos migrantes, os
quais nem por isso deixaram de
afluir à cidade.
Deve-se assinalar que, àquela
altura, a questão dos migrantes
ganhou maior complexidade,
uma vez que grande parte deles
havia constituído família e gerado filhos que eram, portanto, legítimos cidadãos de Paraíso. Se a
rejeição aos migrantes já dividia
a opinião pública, discriminar os
seus descendentes, nascidos em
Paraíso, era odioso.
Em debates dessa natureza,
quanto mais alta a temperatura,
menor a percepção da realidade,
que é sempre complexa. À acusação de que os migrantes foram excluídos da sociedade paraisiense,
alegavam que não "poderiam ter
sido excluídos, uma vez que nunca pertenceram a ela; o que se pode dizer, com propriedade, é que
não foram incluídos e, se não o foram, é porque têm outros costumes e outra religião". Na verdade,
afirmavam os mais radicais: "Esta é a nossa cidade; eles é que vieram pôr seus ovos em nosso ninho", esquecidos que antes foram
os paraisienses que puseram seus
ovos nos ninhos deles.
Estivesse a razão com quem estivesse, o fato é que os migrantes,
ganhando mal, tiveram que se
alojar em bairros distantes, onde
os aluguéis eram mais baratos,
habitados pela classe média baixa. À medida que crescia o seu
número, pioravam as condições
de saneamento e habitabilidade
desses bairros, o que levou os paraisienses que ali moravam a se
mudarem de lá.
E aquela região da cidade foi se
tornando zona exclusiva dos migrados e seus descendentes, verdadeiros guetos. O apego deles a
seus valores religiosos e culturais
tornou difícil a implantação do
ensino público ali, o que veio
agravar a sua marginalidade e
dificultar sua inserção no mercado de trabalho.
Foram-se assim criando as condições para a inadaptação dos jovens e o caldo de cultura para a
criminalidade e a violência. Sem
emprego e sem futuro, muitos jovens passaram a praticar assaltos,
enquanto outros se ligaram ao
tráfico de drogas. Como conseqüência, eram freqüentes as intervenções policiais, que somavam à sua natural violência o
rancor contra o migrante. Marginalizados cultural e socialmente,
alhearam-se da vida da cidade.
Os políticos, por sua vez, afastaram-se dali e ignoravam os problemas dessa população periférica.
Tais problemas iam se agravando a cada dia, uma vez que as levas de migrantes se sucediam e vinham piorar ainda mais as péssimas condições de vida dos que já
ali moravam, gerando uma surda
hostilidade dos emigrados contra
os novos migrantes de que resultaram desavenças e mortes. Muitos deles, tangidos da periferia,
deslocaram-se para outros bairros residenciais, cujos moradores
logo recorreram à polícia a fim de
que os banissem de lá.
Aos poucos, Paraíso foi se tornando uma panela de pressão,
prestes a estourar, o que aconteceu quando dois jovens descendentes de emigrados, fugindo da
polícia, subiram inadvertidamente numa torre de alta tensão
e morreram eletrocutados. Foi o
bastante para que centenas deles,
tomados de fúria, fossem para as
ruas e, noite após noite, incendiassem milhares de automóveis.
O governo, com muita dificuldade, conseguiu finalmente deter a
rebelião que tornara a cidade prisioneira de um vasto anel de fogo.
Mas todos sabem que o pior ainda está por vir, já que os migrantes continuarão a chegar a Paraíso, convencidos de que nela serão
mais felizes do que nas cidades
miseráveis em que nasceram.
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