São Paulo, quarta-feira, 27 de dezembro de 2000

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MARCELO COELHO


Um curioso presente borgiano de Natal

Ganhei um presente curioso neste Natal. É um relógio de cozinha que tem no mostrador, em vez de números, imagens de passarinhos norte-americanos. A cada hora do dia, o relógio reproduz eletronicamente o canto de um passarinho. "A different, authentic bird song announces each hour", diz a embalagem.
Podemos assim ficar familiarizados com o pio do "black-capped chickadee", às 8h; ou do "white-breasted nuthatch", às 11h. O desenho de cada pássaro tem a perfeição de uma decalcomania. Um dispositivo fotossensível faz com que os pássaros silenciem à noite.
Seria fácil ironizar esse viveiro virtual e cronométrico. Assim como as árvores de Natal de plástico, cada vez mais parecidas com as verdadeiras, é como se a tecnologia fizesse uma homenagem perversa ao mundo natural, reproduzindo-o apenas para melhor destruí-lo.
Se não há nada menos autêntico do que o canto de um passarinho reproduzido num chip e programado para tocar na hora certa, talvez exista, contudo, algo de muito verdadeiro nesse relógio eletrônico.
Ninguém reclamava, que eu saiba, do velho relógio de cuco; nem havia, na época em que foi inventado, maiores alarmes quanto ao domínio do "virtual" sobre a realidade. Os relógios de cuco sempre tiveram, para mim, algo de desagradável e assustador; como nos bonecos de mola, seu mecanismo brusco, rangente e intromissivo parecia escarnecer de nossa preguiçosa rotina, de nossa mole, plástica, maleável condição humana.
O relógio eletrônico é bem mais suave: como ainda não me acostumei à sua presença, o piado dos passarinhos surge assim como uma fantasmagoria, como uma alusão incorpórea ao fato de que marcar o tempo, afinal, tem algo a ver com as estações do ano, com as primeiras chuvas, com a chegada desta ou daquela ave migratória.
Vejo que é impossível ironizar esse relógio, porque ele mesmo já é uma ironia, resumindo no mostrador o que seriam os meses, as épocas do ano próprias de cada passarinho retratado.
Há um outro sentido, entretanto, no presente que ganhei. Tanto quanto marcar o tempo, o relógio que reproduz passarinhos evoca também uma idéia de eternidade. Dito assim, fica meio solene; acho melhor pular para o próximo parágrafo.
É que eu andei lendo uma série de conferências de Jorge Luis Borges, publicada pela Companhia das Letras com o título "Esse Ofício do Verso". Borges fala de um poema famoso de Keats, a "Ode a um Rouxinol", que já havia analisado num ensaio do livro "Outras Inquisições".
Keats celebra a idéia de que o pássaro é imortal: de que o mesmo canto que ele ouve foi ouvido por imperadores do passado e foi ouvido, talvez, por Ruth, a moabita de quem se conta a história no Antigo Testamento.
Borges diz que os críticos ingleses, presos ao empirismo, sempre consideraram ilógico o raciocínio de Keats -pois não é possível que o "mesmo" rouxinol cante agora e há 2.000 anos. Para Borges, entretanto, podemos entender a "eternidade" desse rouxinol se pensarmos, não no indivíduo específico, mas no arquétipo, na idéia, na essência do rouxinol.
Essa idéia da imortalidade, que é conquistada ao preço da dissolução do indivíduo, é tema de vários contos de Borges. Alguém que vivesse infinitamente terminaria sendo "todos" os homens, teria passado por todas as experiências possíveis, teria escrito a "Odisséia" e todas as suas traduções.
Os autores clássicos que Borges comenta e cita em seus livros seriam "imortais", na verdade, porque destituídos de qualquer subjetividade, de qualquer traço individual. São citados e reescritos; renovam-se, magicamente, porque o que dizem muda conforme o contexto em que são lidos. Esse é o tema de outro conto de Borges, "Pierre Menard, Autor do Quixote", em que um autor francês do século 19 reescreve o livro de Cervantes, de modo que as mesmas frases do espanhol ganham outro significado se pensarmos que vieram da pena de um poeta pós-simbolista parisiense.
A literatura, para Borges, seria principalmente entendida sob o prisma da citação, da alusão, da referência. Nada mais distante do rouxinol romântico de Keats, em que se trata de encontrar, acima de tudo, a autenticidade do mundo natural, a verdade de alguma coisa que vai além das convenções e dos artifícios da civilização.
Como o romantismo degenerou em mau gosto, em kitsch, em citação descontextualizada e sentimental da natureza perdida (os quadros de pôr-do-sol, as asas de borboleta penduradas na parede), o ideal estético de Borges seria o de uma citação, de uma alusão que se fundisse completamente ao contexto; a frase de um autor clássico "contrabandeada" num conto sobre malfeitores de subúrbio portenho, por exemplo.
Em termos econômicos, seria a utopia de uma sociedade que fosse puramente importadora de bens, um pólo de absorção permanente de valores civilizados.
Voltamos ao meu relógio americano; poderia ser kitsch, se me acenasse com a natureza real dos passarinhos, se pretendesse substituir-se a eles; mas é, na verdade, um relógio que "cita" os passarinhos, que ironiza o romantismo.
É, se quisermos, um relógio borgiano, à medida que podemos entender a obra do autor argentino como um refinado conforto diante de nossa condição periférica; ou, talvez, como a forma de retribuir, em moeda "conversível", o que nos trouxe o colonizador.


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