São Paulo, quinta-feira, 27 de dezembro de 2001

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LITERATURA/ARTIGO

Jovem mexicano põe América hispânica no mapa do noir

CARLOS FUENTES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os romances de detetive não pegaram na América hispânica. Alguns preciosos exemplos, de Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Manuel Peyrou, não bastam para aclimatar um estilo e um tema narrativo que, inventado por Edgar Allan Poe, ganhou cidadania na Inglaterra vitoriana, com Sherlock Holmes, e, no entre-guerras, com Agatha Christie e Dorothy Sayers.
Se Holmes dá-se o luxo de caminhar por todas as classes sociais, Christie, Sayers e seus demais seguidores limitam-se às classes altas, aos finais de semana no campo, às viagens exóticas pelo Nilo...
Os norte-americanos seguiram a mesma tradição, por algum tempo. Philo Vance e Ellery Queen não saem dos salões elegantes. Serão os autores de verniz noir, Dashiell Hammett, Raymond Chandler, James M. Cain, Ross McDonald, que levarão o gênero das "penthouses" ao sótão, das piscinas aos charcos. Charcos urbanos onde a lua não se reflete porque tudo, lua e água, está manchado de sangue.
Carlos Rubio Rosell se incorpora a essa última tradição, a do romance noir norte-americano, mas dá ao gênero um sabor latino-americano muito particular. Não só se inscreve em uma prática literária pouco comum entre os nossos como, na medida em que sua família literária é a do romance noir, sua orfandade literária se relaciona a outro gênero, a do "On the Road" de Jack Kerouac.
"Los Ángeles-Sur" é um thriller de estrada. Mas a "road novel" pertence à tradição mais antiga da literatura, a do deslocamento.
Desde Homero o tema do abandono do lar é o tema original do épico ocidental. Original não só no sentido do "gran tour" que todo europeu inteligente tinha de fazer para passar da juventude a uma certa maturidade, na Europa do Iluminismo em diante, mas também no deslocamento em busca do Graal, da cruzada religiosa, da busca do épico perdido.
Parsifal e Ricardo Coração de Leão, Dom Quixote e Wilhelm Maister, os heróis de Júlio Verne, todos se deslocam, se movem, escolhem o caminho. Na América hispânica, o deslocamento dos exploradores está na raiz de nossa narrativa, e logo na conquista dos interiores impenetráveis, traço comum entre a conquista do oeste nos EUA e a conquista das selvas e rios na América ibérica.
O tumulto social, e às vezes revolucionário, determina o movimento latino-americano. De "Os Sertões", de Euclydes da Cunha, a "Canaima", de Romulo Gallegos. Mas esses mesmos deslocamentos às vezes são vistos por seres imóveis, como Pedro Páramo, que jamais sai de Media Luna. Rosell, em "Los Ángeles-Sur", une as duas tradições. Não é fortuito que seu romance se inicie com a cidade de Los Angeles, a fábrica dos sonhos indispensáveis a um país sem fronteiras internas.
Toda a dinâmica norte-americana é o movimento do Atlântico ao Pacífico. A "conquista do oeste" é a razão de ser do épico norte-americano. Nada a detém, nem as terras dos indígenas nem os territórios da Espanha e do México.
Não quero perder de vista a posição de um romance como "Los Ángeles-Sur", encruzilhada de caminhos desde o título mas também encruzilhada de histórias, encruzilhada de gêneros, encruzilhada de propósitos. Como a "road novel" de Kerouac, essa se desenrola ao longo de uma estrada, a Panamericana, que se estende da Califórnia ao Panamá. Mas diferentemente do romance de estrada americano, o trabalho de Rosell é uma odisséia que se dirige ao sul, dos EUA à América Latina, América Central, Colômbia.
Rosell envia um chicano aos territórios que hoje não são dominados pelas armas militares americanas, mas pelas do crime organizado. Nessas fronteiras que se situa o drama de vingança, a do rapaz que teve o irmão injustamente preso pela máfia colombiana.
Destaco a qualidade do ritmo narrativo de Rubio Rosell. Nos romances noir americanos, a velocidade da história excluía, em princípio, toda referência ao passado do detetive, do olho privado. O personagem criado por Rosell é nosso, é latino, porque não consegue se libertar de seu passado.
"Los Ángeles-Sur" é testemunho de uma dupla invasão, do sul ao norte, do norte ao sul, que resulta atrozmente fatal, converte o crime em sinal e senha, e a vingança em resposta obrigatória. Rubio Rosell, com grande talento narrativo, permite que o oco entre a fatalidade e a vingança, entre o crime e o castigo, se preencha de maneira atrozmente sensual.
Jim Thompson, David Goodis, Chester Himes, Carl Hiaasen. A esses nomes da constelação do gênero é preciso acrescentar agora o do jovem mexicano Carlos Rubio Rosell, que vem a enriquecê-la com uma paisagem moral e política, sentimental e plena de memórias, e livre, só porque narrar liberta, narrar define, narrar salva os restos do naufrágio.


Carlos Fuentes é mexicano, autor de "A Morte de Artemio Cruz", entre outros



Tradução Paulo Miggliacci



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