São Paulo, sábado, 28 de fevereiro de 2004

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CINEMA

Nomes como Sean Penn e Charlize Theron representam avanço em direção a um caráter realista de interpretação

Hollywood tem nova era de ouro da atuação

A. O. SCOTT
DO "NEW YORK TIMES"

A atuação de Charlize Theron em "Monster" foi declarada "uma das maiores performances na história do cinema". Tal hipérbole por parte de um crítico sempre corre o risco de causar espécie, mas não junto a mim. Isso acontece em parte porque também admiro o trabalho de Theron em "Monster".
Mas é também porque seria hipocrisia pura de minha parte zombar de uma declaração histórica tão grandiosa. Eu disse coisas igualmente extravagantes ao saudar o trabalho de um colega de Theron, quando afirmei que o retrato que Sean Penn faz de Jimmy Markun em "Sobre Meninos e Lobos", de Clint Eastwood, é um dos trabalhos de atuação definitivos dos últimos 50 anos.
Em 2003, Sean Penn e Charlize Theron ofereceram a prova mais contundente de que estamos vivendo uma época extraordinária, um período que, futuramente, olhando em retrospectiva, diremos que foi o dos anos dourados da atuação nas telas.
É artigo de fé entre os cinéfilos de todos os gostos, há muito tempo, que o presente -qualquer presente- não passa de sombra pálida do passado. Afinal, muito tempo atrás, na era dos estúdios, tínhamos astros e estrelas de cinema -gente como Cary Grant, Bette Davis, Katharine Hepburn, Humphrey Bogart e assim por diante- como certamente nunca voltaremos a conhecer. E então, nas décadas do pós-guerra, o Group Theater, o Actors Studio e a era heróica do drama americano sério produziram uma geração de atores capazes de provocar emoções profundas no espectador.
Os astros de cinema dos velhos tempos seduziam seu público pelo fato de se manterem basicamente iguais, filme após filme. Independentemente de quem estivesse fazendo de conta ser, ou de se o estivesse fazendo a pedido de George Cukor ou de Alfred Hitchcock, Cary Grant era sempre e esplendidamente Cary Grant. A variedade mais nova de ator, aquela que foi exemplificada em Robert De Niro e Meryl Streep, alcançava seu status transformando-se completamente de um papel a outro -dominando novos sotaques, ganhando e perdendo peso e refratando seu carisma através do prisma da autenticidade.
Essas fases anteriores sugerem a longa evolução do cinema americano, desde a teatralidade estilizada e burilada em direção a um naturalismo cada vez mais cru e não mediado que, com freqüência, também era altamente estilizado, ele próprio. Essa evolução pode ser acompanhada, entre os homens, desde Marlon Brando a Warren Beatty e Paul Newman, chegando a Al Pacino, De Niro, Dustin Hoffman e Robert Duvall. Entre as mulheres, passa por Natalie Wood, Faye Dunaway, Sally Field e Meryl Streep.
Charlize Theron e Sean Penn, nos papéis pelos quais foram indicados ao Oscar com certeza representam ainda mais um avanço no rumo do realismo, na medida em que se esforçam furiosamente para desaparecer dentro da pele das pessoas violentas e problemáticas que representam. Sempre houve um certo grau de ostentação nesse tipo de auto-apagar-se totalmente concentrado, algo que é um dos grandes paradoxos da atuação realista: quanto menos você a nota, mais notável ela é.
Uma das coisas que têm em comum algumas das atuações mais notáveis do último ano, tenham ou não valido indicações ao Oscar, é uma espécie de evitar cuidadoso dos excessos, algo feito com discrição meticulosa. Chiwetel Ejiofor, o ator de teatro inglês que representa um médico nigeriano exilado em "Coisas Belas e Sujas", de Stephen Frears, raramente eleva a voz acima de um sussurro; o sofrimento, a vigilância atenta e a decência cansada do personagem são expressas pelos olhos do ator e os músculos de seu maxilar.
Hoje em dia, freqüentemente se lamenta a escassez de astros de cinema inegáveis -definidos como os atores e atrizes não apenas capazes de gerar boas bilheterias, mas cuja presença é maior do que a soma de seus papéis. De fato, os astros e estrelas de cinema podem estar a caminho de se tornarem obsoletos. Um fato curioso sobre os indicados ao Oscar de melhor filme neste ano é que três dos cinco -"O Senhor dos Anéis", "Seabiscuit" e "Mestre dos Mares", que, por coincidência, não estiveram entre os de produção mais cara- não receberam indicações nas categorias de atores. Ao lado desses grandes espetáculos figura um punhado de filmes menores -de escala modesta demais, possivelmente, para serem levados em conta para o prêmio de melhor filme- que dominam nas categorias de atuação. Eles incluem "Terra de Sonhos", "House of Sand and Fog" e "21 Gramas".
Esses filmes, ao lado de "Sobre Meninos e Lobos", com suas três indicações para atores, sugerem que o atual renascimento da atuação pode estar subvertendo o "star system" de outras maneiras, na medida em que insiste sobre a primazia do conjunto e ignora a tradição injusta de separar os astros verdadeiros ou potenciais dos atores acostumados a representar determinados tipos de papéis. Atores como esses precisam de mais e melhores filmes, porque, na maioria dos casos, seu trabalho se destaca contra um pano de fundo desinteressante.
Sempre há mais bons atores do que existem prêmios e indicações, e sempre haverá mais bons atores do que papéis que valem a pena. Mas, quando os ganhadores do Oscar subirem ao palco, amanhã, valerá a pena considerar que, por um instante, estão à frente de uma multidão, e que aquele palco poderia facilmente estar repleto de seus pares.


Tradução Clara Allain


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