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CINEMA/CRÍTICA
No clássico de 1976, cineasta italiano mostra o histórico sedutor como um homem gélido e lamentável
Em "Casanova", Fellini filma amor deslocado
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Pouca gente lê, hoje em dia,
os incontáveis volumes de
memórias do veneziano Giacomo
Casanova (1725-1798). Gabola, jogador e charlatão, pretendia-se
diplomata, filósofo, matemático,
romancista; seu nome ficou para
a história como sinônimo de conquistador e aventureiro. Não é um
personagem antipático. Em filmes como "Casanova e a Revolução", de Ettore Scola, por exemplo, surge como uma espécie de
sábio envelhecido e tolerante, a
quem Marcello Mastroianni, já
em fim de carreira, conferia o
maior charme.
À primeira vista é difícil saber
por que, depois do sucesso de
"Amarcord" em 1974, Federico
Fellini decidiu-se a adaptar as
"Memórias" de Casanova para o
cinema. O diretor tem uma indisfarçável antipatia pelo personagem -mas o filme não se torna
menos notável por isso.
Ao lado de "Satyricon" (1969) e
de "Roma" (1972), "Casanova"
(1976) pertence ao grupo dos filmes "frios" (isto é, sardônicos,
modernos, anti-sentimentais) de
Federico Fellini. Não encontramos mais aquelas almas inocentes e brutalizadas presentes nos
filmes da década de 1950, como
"La Strada" ou "Noites de Cabíria". Tampouco a nostalgia agridoce de "Amarcord" e de "A Entrevista" se deixa vislumbrar nas
cenas, sempre bizarras e elípticas,
desta viagem de Fellini através das
memórias do famoso libertino do
século 18.
Tudo, a começar pela figura do
protagonista (vivido por um Donald Sutherland descorado, exangue, como que feito de parafina) é
feito para provocar no espectador
o estranhamento, quando não a
repugnância.
Não faltam, claro, as assustadoras mulheres fellinianas -embora o diretor desta vez tenha evitado as gordíssimas; aposta mais
nas velhas, nas lunáticas e matusquelas. Mesmo a ótima música de
Nino Rota não oferece seus habituais e envolventes prazeres ao
ouvinte: é áspera, lembrando
Stravinsky e Prokofieff.
As cenas de sexo, a que Casanova se dedica com profissionalismo e indiferença de ginasta, sucedem-se numa variedade estonteante de cenários, pretextos e
países: uma ilhota em Veneza,
uma estalagem em Dresden, um
caótico palácio em Roma, um
misto de santuário e laboratório
alquímico em Paris acolhem as
atividades do protagonista -que
se vê em companhia, respectivamente, de uma freira que parece
chinesa, de uma corcundinha de
língua agilíssima, de uma italiana
frígida e de uma anciã demente e
ocultista.
Não é preciso dizer que, em todas essas ocasiões, Casanova está
na verdade sempre só. A palavra
"amor", algumas vezes pronunciada durante o filme, parece propositalmente deslocada e sem
sentido.
Apatia e saciedade
Dizia-se muito, nos anos 70, que
a voga da liberdade sexual terminaria provocando apatia e saciedade, depois dos escândalos iniciais. O filme de Fellini sem dúvida procura comprovar essa tese,
exaurindo Donald Sutherland
-e também o espectador- ao
longo de mais de duas horas de
maquinais estrepolias.
Mesmo assim, quase 30 anos
depois da estréia, "Casanova" não
envelheceu. As estranhezas de estilo e as interrupções da narrativa
parecem ter-se suavizado com o
passar do tempo, abrindo mais
espaço para a deslumbrante magia do filme. O contraste entre as
cenas "vazias" -neve, bruma esverdeada, noite- e os momentos
de saturação quase oriental da tela
-carruagens, brocados, adereços- é operado magistralmente
por Fellini, como que simbolizando o destino do personagem, que
se alterna entre a promiscuidade e
a solidão.
Não há praticamente nenhuma
cena de nudez em "Casanova". Já
as belas roupas, as cortinas, as cobertas, os véus, lenços, veludos e
rendas funcionam como verdadeiros personagens do filme -do
mesmo modo que o célebre plástico preto de uma das cenas iniciais. Utilizado por Fellini para fazer de conta que é água do mar,
sua evidente falsidade serve para
denunciar o artifício de tudo.
É que justamente o gosto do artifício, da cerimônia, da ilusão,
aproxima o século 18 europeu do
mundo tipicamente felliniano dos
palhaços, do circo, do teatro, do
Carnaval. O Casanova de Donald
Sutherland é também um
"clown", gélido e lamentável, caminhando sempre para o declínio
-e Fellini não hesita em traçar
uma hierarquia civilizacional entre as nações, que vai dos refinados salões franceses à rigidez espanhola, à esbórnia inglesa e à
franca barbárie alemã.
Duas cenas antológicas valem o
filme inteiro. O apagar das luzes
num teatro em Dresden, enquanto Casanova fica de pé, sozinho,
na platéia; e a aparição da carruagem do papa, fulgurante de ouro,
sobre as águas congeladas do
Gran Canale de Veneza, a que se
segue uma dança estilizada e fúnebre do protagonista com sua
derradeira amante. Quase insuportável; maravilhoso também.
Casanova de Fellini
Il Casanova di Federico Fellini
Produção: Itália/EUA, 1976
Direção: Federico Fellini
Com: Donald Sutherland, Tina Aumont e
Cicely Browne
Quando: em cartaz no Cinesesc
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