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São Paulo, sexta-feira, 28 de março de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Um museu não pode ser um mafuá

Não chega a ser novo. De tão repetido ao longo da história, tem lugar garantido na infindável coleção de bobagens cometidas por qualquer grupo que chega ao poder. O exemplo mais estúpido foi o dos "sans cullotes", que, nos primeiros tempos da Revolução Francesa, ocuparam a Notre Dame de Paris, que, tal como a Bastilha, era um dos símbolos do antigo regime. Transformaram uma das mais belas catedrais góticas do mundo naquilo que hoje chamamos de "espaço". E, como o clima era dominado por cidadãos, o espaço deixou de ser religioso e passou a ser "cívico".
Dali retiraram imagens e a parafernália litúrgica, introduziram uma cidadã (dizem que uma prostituta das ruas de Paris) como Deusa Razão e promoveram toda sorte de eventos, quase todos sacrílegos -e alguns até mesmo obscenos. Era a desforra daquilo que os nobres chamavam de "canalha". Durante séculos, a Monarquia e a Igreja usaram aquele espaço como arma política para oprimir o Terceiro Estado, ou seja, o povo.
Durou pouco. Passado o furor revolucionário, a formidável catedral, obra de oito séculos, foi exorcizada de sua experiência pagã e voltou a ser o que era desde os tempos do corcunda que também lhe deu fama.
Lembro a meu modo essa passagem histórica porque, aqui no Brasil, nos inícios de um governo cujo partido principal tem contas a ajustar com os regimes antigos, os mais destemidos representantes da classe oprimida (o mesmo povo que constituía o Terceiro Estado na alvorada da Revolução Francesa) estão assanhados para ocupar os "espaços" tradicionalmente de uso exclusivo das elites, dos burgueses alienados que gostam de museus sofisticados, óperas, balés clássicos, concertos sinfônicos e manifestações culturais que são consideradas estranhas ao gosto e à necessidade de lazer dos párias da sociedade.
Lembro também a tentativa de governos estaduais, no Rio e em outras capitais, que desejavam transformar seus teatros públicos numa espécie de quadra de escola de samba, palco de eventos comerciais, de fácil consumo popular.
A bola da vez, agora, parece que é o Museu da República, fundado por Juscelino Kubitschek, quando da mudança da capital federal do Rio para Brasília. Foi uma idéia de Josué Montello, que trabalhava com JK e já tinha fundado outros museus. Sediado no Palácio do Catete, ocupa com o prédio em estilo neoclássico e tem um impressionante jardim, quase todo um quarteirão numa zona valorizada da cidade, a frente dando para a rua do Catete e os fundos, para a praia do Flamengo.
Ali está guardada a memória republicana, tal como o Museu Imperial, em Petrópolis, conserva grande parte da história dos dois impérios que tivemos. No caso do Museu da República, o acervo é impressionante, a começar pelo cenário do maior drama de nossa história política, o quarto em que Getúlio Vargas se suicidou.
A concepção de um museu, modernamente, não é estática, limitando-se a um depósito de peças catalogadas e inertes. Há uma dinâmica para atrair visitantes e escolares -e, nesse particular, o Museu da República tornou-se um núcleo de realizações culturais, dispondo de cursos gratuitos de informática, auditórios para palestras e concertos, livraria, cinema, restaurante e um grande parque para o lazer.
A nova estrutura do poder federal, sem dúvida com a melhor das intenções, não podia desperdiçar aquele espaço já integrado à programação básica do Rio de Janeiro como centro cultural. Apenas, com uma discutível concepção intelectual do que seja realmente a cultura, promete de quando em vez inverter o conceito do que seja a manifestação do poder público numa área que prioriza a história, a tradição e o espírito.
Assim como os revolucionários franceses exageraram ao tentar transformar a Notre Dame num ancestral do Moulin Rouge em nome da vulgarização da cultura e do lazer, assim como eventuais governantes quiseram abolir concertos, óperas e balés dos teatros públicos sob o argumento de que os ricos não precisam de espaços de arte, uma vez que podem viajar e frequentar o Scala, o Covent Garden e o Metropolitan, há olho grande em cima do Museu da República, considerando ocioso e antipopular o acervo de um importante ciclo de nossa história, substituindo-o por uma espécie de mafuá, de circo voador destinado a expressões culturais indubitavelmente válidas, mas que podem dispor de espaços já existentes.
O Rio tem um sambódromo tecnicamente preparado para eventos assim, dispõe de excelente esplanada na Lagoa, onde, por sinal, já se realizaram diversos espetáculos e eventos populares, além das praias, que com algum exagero são até entupidas por colossais geringonças de luz e som, além de servirem igualmente para quadras de esportes.
Seria lamentável desfigurar uma instituição como o Museu da República, peça nobre de nossa história, que vem prestando um serviço comunitário que o coloca como um dos pólos mais importantes de atração cultural e turística da antiga capital do Brasil.


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