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CARLOS HEITOR CONY
Um museu não pode ser um mafuá
Não chega a ser novo. De
tão repetido ao longo da
história, tem lugar garantido na
infindável coleção de bobagens
cometidas por qualquer grupo
que chega ao poder. O exemplo
mais estúpido foi o dos "sans cullotes", que, nos primeiros tempos
da Revolução Francesa, ocuparam a Notre Dame de Paris, que,
tal como a Bastilha, era um dos
símbolos do antigo regime.
Transformaram uma das mais
belas catedrais góticas do mundo
naquilo que hoje chamamos de
"espaço". E, como o clima era dominado por cidadãos, o espaço
deixou de ser religioso e passou a
ser "cívico".
Dali retiraram imagens e a parafernália litúrgica, introduziram
uma cidadã (dizem que uma
prostituta das ruas de Paris) como Deusa Razão e promoveram
toda sorte de eventos, quase todos
sacrílegos -e alguns até mesmo
obscenos. Era a desforra daquilo
que os nobres chamavam de "canalha". Durante séculos, a Monarquia e a Igreja usaram aquele
espaço como arma política para
oprimir o Terceiro Estado, ou seja, o povo.
Durou pouco. Passado o furor
revolucionário, a formidável catedral, obra de oito séculos, foi
exorcizada de sua experiência pagã e voltou a ser o que era desde
os tempos do corcunda que também lhe deu fama.
Lembro a meu modo essa passagem histórica porque, aqui no
Brasil, nos inícios de um governo
cujo partido principal tem contas
a ajustar com os regimes antigos,
os mais destemidos representantes da classe oprimida (o mesmo
povo que constituía o Terceiro Estado na alvorada da Revolução
Francesa) estão assanhados para
ocupar os "espaços" tradicionalmente de uso exclusivo das elites,
dos burgueses alienados que gostam de museus sofisticados, óperas, balés clássicos, concertos sinfônicos e manifestações culturais
que são consideradas estranhas
ao gosto e à necessidade de lazer
dos párias da sociedade.
Lembro também a tentativa de
governos estaduais, no Rio e em
outras capitais, que desejavam
transformar seus teatros públicos
numa espécie de quadra de escola
de samba, palco de eventos comerciais, de fácil consumo popular.
A bola da vez, agora, parece que
é o Museu da República, fundado
por Juscelino Kubitschek, quando
da mudança da capital federal do
Rio para Brasília. Foi uma idéia
de Josué Montello, que trabalhava com JK e já tinha fundado outros museus. Sediado no Palácio
do Catete, ocupa com o prédio em
estilo neoclássico e tem um impressionante jardim, quase todo
um quarteirão numa zona valorizada da cidade, a frente dando
para a rua do Catete e os fundos,
para a praia do Flamengo.
Ali está guardada a memória
republicana, tal como o Museu
Imperial, em Petrópolis, conserva
grande parte da história dos dois
impérios que tivemos. No caso do
Museu da República, o acervo é
impressionante, a começar pelo
cenário do maior drama de nossa
história política, o quarto em que
Getúlio Vargas se suicidou.
A concepção de um museu, modernamente, não é estática, limitando-se a um depósito de peças
catalogadas e inertes. Há uma dinâmica para atrair visitantes e
escolares -e, nesse particular, o
Museu da República tornou-se
um núcleo de realizações culturais, dispondo de cursos gratuitos
de informática, auditórios para
palestras e concertos, livraria, cinema, restaurante e um grande
parque para o lazer.
A nova estrutura do poder federal, sem dúvida com a melhor das
intenções, não podia desperdiçar
aquele espaço já integrado à programação básica do Rio de Janeiro como centro cultural. Apenas,
com uma discutível concepção intelectual do que seja realmente a
cultura, promete de quando em
vez inverter o conceito do que seja
a manifestação do poder público
numa área que prioriza a história, a tradição e o espírito.
Assim como os revolucionários
franceses exageraram ao tentar
transformar a Notre Dame num
ancestral do Moulin Rouge em
nome da vulgarização da cultura
e do lazer, assim como eventuais
governantes quiseram abolir concertos, óperas e balés dos teatros
públicos sob o argumento de que
os ricos não precisam de espaços
de arte, uma vez que podem viajar e frequentar o Scala, o Covent
Garden e o Metropolitan, há olho
grande em cima do Museu da República, considerando ocioso e
antipopular o acervo de um importante ciclo de nossa história,
substituindo-o por uma espécie
de mafuá, de circo voador destinado a expressões culturais indubitavelmente válidas, mas que
podem dispor de espaços já existentes.
O Rio tem um sambódromo tecnicamente preparado para eventos assim, dispõe de excelente esplanada na Lagoa, onde, por sinal, já se realizaram diversos espetáculos e eventos populares,
além das praias, que com algum
exagero são até entupidas por colossais geringonças de luz e som,
além de servirem igualmente para quadras de esportes.
Seria lamentável desfigurar
uma instituição como o Museu
da República, peça nobre de nossa história, que vem prestando
um serviço comunitário que o coloca como um dos pólos mais importantes de atração cultural e turística da antiga capital do Brasil.
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