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BERNARDO CARVALHO
Oferta e demanda
No início dos anos 80, um
grupo de jovens de Porto
Alegre começou a fazer cinema
do jeito que dava. Eram filmes artesanais, em super-8, que representavam uma experiência de geração e que terminaram atraindo
a atenção do resto do país. Dentre
esses filmes, "Coisa na Roda"
(1982), de Werner Schünemann,
acaba de ser lançado em DVD pela Secretaria Municipal de Cultura e pela Casa de Cinema de Porto Alegre, na mesma coleção em
que já saíram outros títulos da
época e do mesmo pólo de produção, como "Deu pra Ti Anos 70"
(1981), de Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti; "Inverno" (1983), de
Carlos Gerbase, e "Beijo Ardente -
Overdose" (1984), de Flávia Moraes e Hélio Alvarez.
"Coisa na Roda" não é um filme
especialmente inovador. Não há
nenhum experimentalismo, nenhum achado fora de série. É a
expressão despojada de um grupo
de jovens. Mas, além de simpático, é excepcional em pelo menos
um aspecto, hoje inconcebível: o
filme é resultado da simples urgência de fazer cinema, independentemente de qualquer tipo de
demanda (de público, de mercado etc.).
É claro que há um efeito nostálgico inevitável em "Coisa na Roda", mesmo para quem não viveu
naquele tempo e naquele lugar.
Sendo o filme a expressão de uma
experiência geracional, não podia ser de outra forma. São bichos-grilos que freqüentam aulas
de teatro, namoram entre uma
aula e outra, vivem em repúblicas
de estudantes, participam do movimento estudantil, viajam de carona e acampam na serra gaúcha. O super-8, com a sua imagem precária, sem definição, suja
e riscada, contribui para criar um
efeito de filme doméstico, de documentário caseiro, feito entre
amigos. É o registro de um modo
de fazer que se perdeu. Mas, antes
de tudo, é um documento de juventude, de um tempo em que
ainda só havia energia e vontade,
em que demandas externas não
eram levadas em conta, quando
tudo ainda podia ser apenas oferta.
É claro que a nostalgia e a distância implicam um tipo de idealização. "Coisa na Roda" deixa a
impressão de uma iniciativa que
não dependia nem de narcisismo,
nem de marketing, nem da ânsia
de se incorporar ao mercado. E se
hoje isso pode parecer ingênuo e
antiquado, é só porque, pelas normas vigentes, tudo passou a ser
tratado como produto. Já não pode haver o idealismo de uma obra
sem marketing num mundo onde
a obsessão mercantil pela idéia de
exposição e celebridade chegou
ao seu paroxismo.
O recente fenômeno dos blogs
pessoais, em princípio análogo à
vontade de expressão alternativa
dos jovens cineastas de Porto Alegre, é exemplar dessa mudança
de perspectiva. Os blogs, alternativos só na aparência, são uma
das principais ferramentas da autopromoção no mundo da comunicação eletrônica. O objetivo primeiro da maioria avassaladora
dos blogs é a publicação/divulgação de si, a criação de uma imagem pública a partir de diários e
opiniões pessoais. Isso não quer
dizer que não sirvam também para a divulgação de obras artísticas ou literárias, algumas até bem
interessantes. Mas a "obra" nos
blogs é, em geral e antes de mais
nada, a auto-exposição.
Com isso, desaparece também o
sentido de resistência. Mesmo
quando parece haver inconformidade, no fundo o que há é uma
campanha de conformação da
imagem pessoal à imagem pública, em que o produto sou eu. Há
uma correspondência direta entre os blogs e o mundo da publicidade.
Outro exemplo incrível é o das
artes plásticas que, encurraladas
pelo mercado e dependentes dele,
terminaram por se igualar à moda.
Num livro de 1981, que acaba de
sair no Brasil ("A Transfiguração
do Lugar-Comum", ed. Cosacnaify), o americano Arthur C.
Danto pergunta o que faz um objeto ser arte aos nossos olhos. Interessado no fenômeno da arte pop,
Danto reflete sobre um truísmo:
"nada é uma obra de arte sem
uma interpretação que a constitua como tal". As obras de arte só
"são o que são, porque interpretadas como são".
A consciência desse truísmo, associada ao mercantilismo publicitário de hoje, acabou por fazer a
interpretação substituir a obra. E,
uma vez que a obra é só interpretação, a arte pode ser tudo e nada.
Pode ser tanto um desfile de modas, o vestido de fulano de tal, como um panfleto de políticas alternativas. Também pode ser as
duas coisas ao mesmo tempo, moda e aparência de política alternativa, apesar da contradição.
Uma vez que a interpretação
substituiu a obra, é natural que o
curador tenha ganhado quase o
mesmo peso do artista. O melhor
curador, como o melhor publicitário, é aquele que sabe induzir
demandas. É aquele que sabe inserir seu produto no mercado, que
consegue convencer o mercado de
que a arte hoje é isto e não aquilo.
O curador, como o publicitário, é
a peça-chave de um mundo onde
já não pode haver oferta sem demanda. Entre os artistas, ele elege
os que melhor correspondem à
sua interpretação. Em outros
tempos, não muito remotos, o
verdadeiro artista seria, a rigor,
aquele que não correspondesse a
demanda nenhuma, que criasse
ofertas inesperadas onde não havia demanda, que contrariasse os
curadores. Se o que toda obra de
arte sempre fez foi "exteriorizar
uma maneira de ver o mundo, expressar o interior de um período
cultural", como diz Danto, o nosso é o tempo da conformidade
mais absoluta.
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