São Paulo, terça-feira, 28 de março de 2006

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BERNARDO CARVALHO

Oferta e demanda

No início dos anos 80, um grupo de jovens de Porto Alegre começou a fazer cinema do jeito que dava. Eram filmes artesanais, em super-8, que representavam uma experiência de geração e que terminaram atraindo a atenção do resto do país. Dentre esses filmes, "Coisa na Roda" (1982), de Werner Schünemann, acaba de ser lançado em DVD pela Secretaria Municipal de Cultura e pela Casa de Cinema de Porto Alegre, na mesma coleção em que já saíram outros títulos da época e do mesmo pólo de produção, como "Deu pra Ti Anos 70" (1981), de Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti; "Inverno" (1983), de Carlos Gerbase, e "Beijo Ardente - Overdose" (1984), de Flávia Moraes e Hélio Alvarez.
"Coisa na Roda" não é um filme especialmente inovador. Não há nenhum experimentalismo, nenhum achado fora de série. É a expressão despojada de um grupo de jovens. Mas, além de simpático, é excepcional em pelo menos um aspecto, hoje inconcebível: o filme é resultado da simples urgência de fazer cinema, independentemente de qualquer tipo de demanda (de público, de mercado etc.).
É claro que há um efeito nostálgico inevitável em "Coisa na Roda", mesmo para quem não viveu naquele tempo e naquele lugar. Sendo o filme a expressão de uma experiência geracional, não podia ser de outra forma. São bichos-grilos que freqüentam aulas de teatro, namoram entre uma aula e outra, vivem em repúblicas de estudantes, participam do movimento estudantil, viajam de carona e acampam na serra gaúcha. O super-8, com a sua imagem precária, sem definição, suja e riscada, contribui para criar um efeito de filme doméstico, de documentário caseiro, feito entre amigos. É o registro de um modo de fazer que se perdeu. Mas, antes de tudo, é um documento de juventude, de um tempo em que ainda só havia energia e vontade, em que demandas externas não eram levadas em conta, quando tudo ainda podia ser apenas oferta.
É claro que a nostalgia e a distância implicam um tipo de idealização. "Coisa na Roda" deixa a impressão de uma iniciativa que não dependia nem de narcisismo, nem de marketing, nem da ânsia de se incorporar ao mercado. E se hoje isso pode parecer ingênuo e antiquado, é só porque, pelas normas vigentes, tudo passou a ser tratado como produto. Já não pode haver o idealismo de uma obra sem marketing num mundo onde a obsessão mercantil pela idéia de exposição e celebridade chegou ao seu paroxismo.
O recente fenômeno dos blogs pessoais, em princípio análogo à vontade de expressão alternativa dos jovens cineastas de Porto Alegre, é exemplar dessa mudança de perspectiva. Os blogs, alternativos só na aparência, são uma das principais ferramentas da autopromoção no mundo da comunicação eletrônica. O objetivo primeiro da maioria avassaladora dos blogs é a publicação/divulgação de si, a criação de uma imagem pública a partir de diários e opiniões pessoais. Isso não quer dizer que não sirvam também para a divulgação de obras artísticas ou literárias, algumas até bem interessantes. Mas a "obra" nos blogs é, em geral e antes de mais nada, a auto-exposição.
Com isso, desaparece também o sentido de resistência. Mesmo quando parece haver inconformidade, no fundo o que há é uma campanha de conformação da imagem pessoal à imagem pública, em que o produto sou eu. Há uma correspondência direta entre os blogs e o mundo da publicidade.
Outro exemplo incrível é o das artes plásticas que, encurraladas pelo mercado e dependentes dele, terminaram por se igualar à moda.
Num livro de 1981, que acaba de sair no Brasil ("A Transfiguração do Lugar-Comum", ed. Cosacnaify), o americano Arthur C. Danto pergunta o que faz um objeto ser arte aos nossos olhos. Interessado no fenômeno da arte pop, Danto reflete sobre um truísmo: "nada é uma obra de arte sem uma interpretação que a constitua como tal". As obras de arte só "são o que são, porque interpretadas como são".
A consciência desse truísmo, associada ao mercantilismo publicitário de hoje, acabou por fazer a interpretação substituir a obra. E, uma vez que a obra é só interpretação, a arte pode ser tudo e nada. Pode ser tanto um desfile de modas, o vestido de fulano de tal, como um panfleto de políticas alternativas. Também pode ser as duas coisas ao mesmo tempo, moda e aparência de política alternativa, apesar da contradição.
Uma vez que a interpretação substituiu a obra, é natural que o curador tenha ganhado quase o mesmo peso do artista. O melhor curador, como o melhor publicitário, é aquele que sabe induzir demandas. É aquele que sabe inserir seu produto no mercado, que consegue convencer o mercado de que a arte hoje é isto e não aquilo. O curador, como o publicitário, é a peça-chave de um mundo onde já não pode haver oferta sem demanda. Entre os artistas, ele elege os que melhor correspondem à sua interpretação. Em outros tempos, não muito remotos, o verdadeiro artista seria, a rigor, aquele que não correspondesse a demanda nenhuma, que criasse ofertas inesperadas onde não havia demanda, que contrariasse os curadores. Se o que toda obra de arte sempre fez foi "exteriorizar uma maneira de ver o mundo, expressar o interior de um período cultural", como diz Danto, o nosso é o tempo da conformidade mais absoluta.


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