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Brincalhão, mas não ingênuo
As flutuações entre presente e passado, realidade e fantasia, são asseguradas, com total precisão, pela maestria literária de Chico Buarque
ROBERTO SCHWARZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Leite Derramado" é
um livro divertido,
que se lê de um estirão. O título refere-se a um
casamento estragado pelo ciúme e, indiretamente, ao curso
das coisas no Brasil. Aos leitores mais atentos o romance sugere uma porção de perspectivas meio escondidas, que fazem
dele uma obra ambiciosa. Os
amigos de Machado de Assis
notarão o paralelo com "Dom
Casmurro".
Entre as façanhas da narrativa está a figura de Matilde, uma
garota incrivelmente desejável
feita de quase nada. Quando ela
entra no mar, daquele jeito dela, é "como se pulasse corda".
"Saía da igreja como quem saísse do cinema Pathé" e circulava
pela fila de pêsames "como se
estivesse numa fila de sorveteria". O ciúme que ela desperta
no marido-narrador, Eulálio
d'Assumpção (com "p", para
não ser confundido com os meros Assunção), é o pivô do livro
e dá margem a sequências e
análises memoráveis.
Note-se, para contrabalançar
a impressão de encantamento
juvenil, que o narrador é um
homem de cem anos, internado
à força num hospital infecto.
Entre gritos, vizinhos entubados e baratas andando na parede ele recorda -a 80 anos de
distância- o breve casamento
em que foi feliz e traído (em sua
opinião). De tempos em tempos a boa lembrança ainda é capaz de transformar o macróbio
acamado em "maior homem do
mundo", metáfora que é uma
indecência alegre. Por sua vez,
o feitiço irreverente de Matilde,
entre modernista e patriarcal,
também foge ao decoro: a esposa perturbadora não tem ginásio completo, é mãe aos 16 anos
e assobia para chamar os garçons, além de ser aluna-problema do Sacré Coeur e congregada mariana.
Como tudo que é interessante, o ciúme e o amor não se esgotam em si mesmos. Entre várias irmãs claras, Matilde é a
única escura, para desgosto da
sogra, que entretanto tem um
irmão beiçudo. Mais adiante se
saberá que a moça é filha adotiva duma escapadela baiana do
pai. Os seus conhecimentos de
francês e a sua cultura geral
deixam a desejar, envergonhando o marido, que nos momentos de ciúme acha que casou com uma mulher vulgar.
Para educá-la ou humilhá-la ele
gosta de encher a boca "para
contar como é um transatlântico por dentro". Em plano diferente mas aparentado, a pele
"quase castanha" da menina
combina com cetim laranja, o
que deslumbra e enfurece Eulálio, que preferiria que ela
usasse roupa mais fechada, de
tons mais discretos. Em suma,
tanto o amor como o ciúme se
alimentam da desigualdade de
classe e de cor, que segundo a
ocasião funcionam como atrativo ou objeção. Estamos em
plena comédia brasileira.
Quando é abandonado por
Matilde, que vai embora sem
dar explicação, Eulálio não se
desinteressa das mulheres. Como Dom Casmurro ele recebe
visitas femininas em seu casarão, às quais pede que vistam as
roupas da outra, insubstituível.
A relação desigual, em que nome de família, dinheiro e preconceito de cor e classe se articulam com desejo e ciúme, forma um padrão consistente, que
vira cacoete. Os seus desdobramentos mais reveladores ocorrem no hospital, onde o patriarca centenário, agora já sem tostão, faz a corte a praticamente
todas as enfermeiras de turno,
a que promete casamento, roupas finas, nome ilustre, palacete e baixelas, desde que se dediquem só a ele. A uma delas, como um eco dos atritos com Matilde, ele garante que não irá
perguntar o que ela faz durante
as suas tardes, quando não está
com ele, nem vai se envergonhar dela em sociedade.
Lembranças e digressões
Por momentos Eulálio acha
que está ditando as suas memórias às enfermeiras, em cuja
gramática não confia. Como
elas não lhe dão maior bola, o
leitor conclui que estão apenas
preenchendo o prontuário hospitalar, pedindo o ano de nascimento e a filiação do paciente
que fala pelos cotovelos. Seja
como for, entre anedotas familiares, lembranças e digressões,
ele vai desenrolando a história
dos Assumpção, começando no
século 15 e chegando a um incerto tataraneto em 2007.
Quanto aos antepassados, as
memórias têm algo dum samba
do crioulo doido da classe dominante. Depois de chegar ao
Brasil na comitiva de dom João
6º, quando um trisavô serviu de
confidente a dona Maria, a louca, a família dedica-se ao tráfico
negreiro e, mais adiante, a negociatas propiciadas pelo abolicionismo, visando repatriar os
negros à África. Já na República, o pai de Eulálio é um senador belle époque, fixado em loiras e ruivas, de preferência sardentas, além de ser homem de
confiança dos armeiros franceses, que através dele vendem
canhões obsoletos ao exército
brasileiro. Quanto aos descendentes, a filha baixa o nível ao
casar com um filho de imigrante, o neto sai comunista da linha chinesa e o bisneto, nascido na cadeia onde o pai esteve
preso e foi morto, é um crioulo,
pai por sua vez de um garotão
traficante de drogas, que aparecerá no "Jornal Nacional" de
cara encoberta pela jaqueta. Do
ângulo senhorial, a degringolada não podia ser maior. Do ângulo a que o livro deve a sua acidez e qualidade, alguma coisa
na família pode ter melhorado,
nada piorou, e no essencial ficaram elas por elas.
A nulidade do próprio Eulálio é quase total, uma verdadeira proeza artística a seu modo.
Como ele mesmo é o narrador,
temos uma situação literária
machadiana, em que a crítica
social não se faz diretamente,
mas pela autoexposição "involuntária" de um figurão. Recapitulando sua vida com propósito sentimental, este sem querer vai entregando os segredos
de sua classe, em especial os podres. O pressuposto desta solução formal -trata-se de uma
forma em sentido pleno- é
uma certa conivência maldosa
entre o autor e o leitor esperto,
às expensas do canastrão que
está com a palavra. O virtuosismo com que Chico encarna em
primeira pessoa a mediocridade e os preconceitos oligárquicos de seu narrador, tornando-o extremamente interessante,
e aliás sempre engraçado, é notável. Além da referência machadiana, provavelmente deliberada, há uma afinidade de
fundo com a ficção de Paulo
Emílio Salles Gomes, outro
mestre na denúncia travestida
de recordação.
Assim, quando perde o pai,
Eulálio trata de lhe seguir os
passos ilustres. Enverga uma
das gravatas inglesas do senador, vai tomar cafezinho com
políticos nos respectivos gabinetes, passa pelo escritório da
Le Creusot, a firma francesa
cujas negociatas o grande homem facilitava, leva bombons à
secretária, fuma uns charutos,
dá uma chegada ao banco e antes das quatro volta para casa.
Como não é senador, agora ficou tudo mais difícil e precisa
ele mesmo fazer a fila para desembaraçar a mercadoria na alfândega. As coisas já não funcionam como antes, mas ainda
assim o esquema da família
"cujo nome abre portas" é luminoso como um sonho e vale
uma citação extensa. À maneira
do Machado da "Teoria do Medalhão", o romancista fixa um
tipo nacional.
"Mas eu não tinha dúvidas de
que, para mim, a porta certa se
abriria sozinha. De trás dela, me
chamaria pelo nome justamente
a pessoa que eu procurava. E esta me anunciaria com presteza à
pessoa influente, que desceria as
escadas para me buscar. E me
abriria seu gabinete, onde já me
aguardariam varias chamadas
telefônicas. E pelo telefone, poderosas pessoas me soprariam
as palavras que desejavam ouvir. E de olhos fechados, eu molharia pelo caminho as mãos
que meu pai molhava. E pelo triplo do preço tratado me comprariam os canhões, os obuses, os
fuzis, as granadas e toda a munição que a Companhia tivesse
para vender. Meu nome é Eulálio d'Assumpção, não por outro
motivo a Le Creusot & Cie. me
confirmou como seu representante no país."
Dito isso, há um ponto em
que Eulálio não é medíocre. O
seu gosto pelas mulheres é forte e lhe dita condutas e análises
surpreendentes, em dissonância com a sua frouxidão geral,
com seus preconceitos de toda
ordem e as obnubilações do
ciúme. Longe de ser um erro na
construção da personagem, o
desnível compõe um tipo. Ainda aqui estamos em águas machadianas, onde também a fibra amatória é a exceção que
escapa a certo rebaixamento
genérico e derrisório imposto
pela condição de ex-colônia às
elites brasileiras. Como marca
local, a desproporção entre a
intensidade da vida amorosa e
a irrelevância da vida do espírito é uma caracterização profunda, com alcance histórico, a
que o romance de Chico Buarque acrescenta uma figura.
Sem resposta
O núcleo romanesco da intriga -o seu elemento de sensação- é o desaparecimento
inexplicado de Matilde. Ela se
foi com o engenheiro francês?
Fugiu aos ciúmes do marido?
Caiu na vida? Pegou uma doença e quis morrer fora da vista
dos seus? Morreu num acidente de carro, acompanhada de
um homem? Ao sabor da oportunidade, as explicações são
adotadas pelo próprio marido,
pela sogra, pela mãe adotiva,
pela filha, pelas coleguinhas
desta, pelo pároco da Candelária, que veio tomar chá, e pela
voz anônima da cidade. Como
em "Dom Casmurro", não há
resposta segura para o traiu-não-traiu, e o livro é construído
de maneira a alimentar o ânimo fofoqueiro dos leitores. Em
duas ocasiões antológicas, atormentado pelo ciúme, que o empurra a barbarizar, Eulálio vê a
sua certeza se desfazer em nada. Por outro lado, se a incerteza dos fatos, da cronologia e da
memória está no centro da intriga, a realidade que se forma à
sua volta é clara e sólida,
sem nada de indecidível, e as
dúvidas do narrador se encaixam nela com naturalidade,
compondo um panorama social
amplo, de muita vivacidade. A
carpintaria atrás do jorro aleatório das recordações é
realista e controlada até o último pormenor.
Pelo foco nos Assumpção,
pelo arco de tempo abarcado e
pelas questões de classe e raça,
"Leite Derramado" pareceria
ser um romance histórico ou
uma saga familiar, coisas que
não é. Como nos filmes em que
a ambientação diz tanto ou
mais do que a intriga, o pano de
fundo contemporâneo talvez
seja a personagem principal, a
que Eulálio, a despeito das presunções, se integra como um
anônimo qualquer. A pretexto
disso e daquilo, da petulância
popular de Matilde, das surras
de chicote que são tradição na
família, do horror aos hospitais
públicos ou do samba na vitrola, o que se configura é a modernização na variante brasileira,
em que tudo desemboca.
Os Assumpção, que passam
de acompanhantes de dom
João 6º a barões negreiros, a
aproveitadores do abolicionismo e a traficantes de influência
na República Velha, são antes
uma categoria social do que
uma família e importam menos
do que o tempo que os atravessa.
Não há encadeamento interno individualizando e separando as estações, as quais
compartem a condição antediluviana, recuada de uma era.
Elas funcionam como o passado senhorial em bloco por oposição ao presente moderno, ou
também, pelo contrário, como
a prefiguração deste e de sua
desqualificação. A tônica recai
na diferença entre os tempos?
Na superação de um pelo outro?
Na decadência? Na continuidade secreta? Quem configura a resposta, que não é simples, é o vaivém entre antes e
agora, operado pela agilidade
da prosa. Os jardins dos casarões de Botafogo são substituídos por estacionamentos, os
chalés de Copacabana por arranha-céus, as fazendas por favelas e rodovias, e as negociatas
antigas por outras novas, talvez
menos exclusivas. A relação
desconcertante dessa periodização com as ideias correntes
de progresso -ou de retrocesso- faz a força do livro, que é
brincalhão, mas não ingênuo.
As flutuações entre presente
e passado, realidade e fantasia,
ângulo familiar e ângulo público são caucionadas, no plano da
verossimilhança psicológica,
pela confusão mental do narrador. No plano da técnica narrativa elas são asseguradas, com
total precisão, pela maestria literária de Chico Buarque, o romancista, para quem o narrador de anteontem é um artifício
que permite sobrepor e confrontar as épocas.
É claro que
não se trata aqui das derivas da
memória de um ancião, mas de
invenções do artista, sempre
intencionais, carregadas de humorismo e ambiguidade. Para
não perder a nota específica, ligada à história nacional, é preciso ter em mente a substância
polêmica de cada situação, com
a sua parte de alta comédia. O
barão negreiro, por exemplo,
foi uma glória da família, continua a sê-lo para Eulálio, mas é
um malfeitor para os pósteros.
Mesma coisa para o avô abolicionista, um benfeitor tão problemático quanto o outro: em
vez de integrar os negros à sociedade brasileira, como quer a
consciência de hoje, ele quer
devolvê-los à África e ganhar
dinheiro na operação. Já o pai
senador, um pró-homem da
República, representa bem o
que pouco tempo depois se
chamaria um lacaio do imperialismo.
Assim, trazendo escravos ou mandando-os de
volta, cobrando e torrando comissões ilegais, os Assumpção
vão cumprindo o seu papel de
classe dominante, europeizadíssimos e fazendo tudo fora
da lei. A dissonância entre a autoimagem e a imagem que a
história fixaria deles em seguida -mas será que fixou?- impregna a narrativa de comicidade politicamente incorreta do
começo ao fim.
Senso crítico
O padrão da prosa, que tem
correspondência profunda
com esse quadro geral, é muito
brilhante. Por um lado, a fala de
Eulálio é salpicada de expressões um pouco fora de uso, indicando idade e privilégio social; por outro, a sua leveza e
alegria são netas do modernismo e de uma estética contrária
à afetação. Assim, a fala é e não
é de Eulálio, ou melhor, ela é
uma imitação cheia de humor,
impregnada de senso crítico.
O seu andamento ligeiro dissolve as presunções senhoriais,
que se transformam em ilustrações quase didáticas dos despropósitos de outrora. "Nunca
uma nódoa, uma ruga na roupa,
meu pai de manhã sai do quarto
tão alinhado quanto entrou de
noite, e quando menor eu acreditava que ele dormia em pé
feito cavalo".
Esquematizando, digamos
que os termos antigos ora são
de gente graúda, marcando autoridade ou truculência, ora são
familiares, marcando a informalidade também tradicional.
Esta segunda vertente envelheceu menos e guarda parentesco
de fundo com a familiaridade
sem família de nossos dias, representada no caso pela TV
sempre ligada no mais alto, pela polícia trafegando na contramão, pela desgraceira nos hospitais populares, pela trambicagem geral, pela cidade que
não termina, pela sem-cerimônia em público, pela gramática
desautorizada. É como se o presente continuasse a informalidade do passado patriarcal,
multiplicando-a por mil, dando-lhe a escala das massas,
para melhor ou para pior.
Talvez seja isso o "leite derramado" que não adianta chorar:
persistiu a desigualdade, desapareceram o decoro e a autoridade encasacada, e não se instalaram o direito e a lei. É o que
no interregno entre antigamente e agora se chamava modernização sem revolução burguesa. Sem saudosismo nem
adesão subalterna ao que está
aí, a invenção realista de Chico
Buarque é uma soberba lufada
de ar fresco.
Avaliação: ótimo
ROBERTO SCHWARZ, 70, é crítico literário, autor de "Ao Vencedor as Batatas", entre outros.
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