São Paulo, sábado, 28 de março de 1998

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CRÍTICA
A multiartista Denise Stoklos ensina a desobedecer

Cleo Velleda/Folha Imagem
Denise Stoklos, que apresentou o espetáculo "Desobediência Civil", em Curitiba


NELSON DE SÁ
enviado especial a Curitiba

"Com referência ao egocentrismo... eu não falaria tanto de mim se houvesse outra pessoa que eu conhecesse melhor." Era Denise Stoklos, no início de "Desobediência Civil", espetáculo solo que levou a Curitiba.
Com muito humor, à vontade, com uma consciência nada egocêntrica de sua arte, capaz até de brincar consigo mesma e seu Teatro Essencial, a multiartista (autora, diretora, atriz) se propôs uma tarefa nada fácil. Fazer o último discurso do segundo milênio, até os seus últimos segundos.
Um espetáculo dirigido aos "não-neoliberais", como avisa, desde logo. Dirigido ao futuro, ao novo milênio.
Stoklos não é artista de seguir ondas. Seu teatro é, sempre foi, estranhamente engajado para tempos neoliberais.
No discurso final do milênio, ataca o "sistema" e faz lembrar que é preciso fazer a coisa certa. Que é preciso "refletir se pode ser melhorada a vida". É quase um sermão, mas nada moralista ou fatalista, pelo contrário.
É extremamente humanista, desenvolvido do "ensaio rebelde" do escritor americano Henry David Thoreau, "Desobediência Civil" -com muitos reflexos, também, do igualmente célebre "Walden".
Grosso modo, o ensaio trata da decisão de Thoreau de reagir ao Estado, deixando de pagar impostos para sustentar "pessoa jurídica à qual não tenha aderido" (a origem da revolta seria, na verdade, o abolicionismo do escritor, nos EUA pré-guerra civil). A desobediência faz com que seja preso.
Mas Denise Stoklos não encenou "Desobediência Civil". Parte das idéias de Thoreau para sátiras da vida cotidiana, como a febre de consumo (ao som de um tango, um quadro mudo hilariante), e passagens menos cômicas, como um tocante louvor ao ator (falando diretamente ao público de Curitiba, como que introduzindo aos meandros da arte do ator, ela que é natural do Paraná).
Salta de um para outro, dos quadros mais independentes para o roteiro baseado em Thoreau. E fala de FHC, de ACM, dos "obedientes dos bancos mundiais".
E faz piadas sem a menor responsabilidade: "um tio meu era tão relaxado que adormeceu fazendo a barba".
E faz uma interminável e hilariante sequência de perguntas, que derruba o público, sobre o ato de defecar.
Ela sabe como fazer um teatro "popular", ao mesmo tempo em que se aprofunda nos direitos individuais.
Um exemplo: ecoando "Walden", depois de falar do isolamento, da vida "só", bem à frente diz, "que saudades da civilização, que saudades de uma intoxicaçãozinha de maionese".
A multiartista está menos carregada, mais leve e brincalhona neste novo espetáculo, mas não deixou de lado o obviamente louvável cuidado com a forma, em seus movimentos, aqui e ali em sua dança.
É a mesma Denise Stoklos de assombroso talento, mas agora livre de afetação.
O cuidado com a forma estendeu-se, não bastasse, à cenografia. Ao que consta, "Desobediência Civil" é, dos espetáculos solo, o primeiro que ganha cenário. Criado por Gringo Cardia, é como a interpretação -belo e de uma simplicidade que desarma.



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