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CONTARDO CALLIGARIS
Kinsey: vamos falar de sexo?
Estréia amanhã o filme
"Kinsey - Vamos Falar de Sexo", de Bill Condon. Liam Neeson
é Alfred Kinsey, o biólogo que, no
fim dos anos 40, forçou os americanos (e o mundo) a encarar a diversidade das fantasias e dos
comportamentos sexuais humanos.
Claro, já fazia tempo que a
"Psychopathia Sexualis", de
Krafft-Ebing, se escondia nas estantes mais altas das bibliotecas
da classe média. Adolescentes e
adultos encontravam no latim do
título (mantido nas inúmeras traduções) uma boa desculpa para
acessar um repertório de sacanagens sem perder a compostura. É
um tratado científico, não é?
Também fazia tempo que
Freud repetia esta evidência: a sexualidade humana não é orientada só pelas necessidades da reprodução.
No entanto, até Kinsey, a extravagância dos desejos podia ser
concebida como catálogo das bizarrias de loucos e louquinhos;
pouco ou nada a ver com a gente.
Kinsey não queria explicar nada; não era psicólogo e não se propunha a descobrir motivações.
Mas ele era um extraordinário
entrevistador, capaz de perguntar
e escutar sem julgar. Com um pequeno time, percorreu os Estados
Unidos dando a palavra a milhares de homens e mulheres para
que falassem de sua vida sexual.
Revelou assim a estranha cara da
pretensa "normalidade".
Em 1948, ele publicou "O Comportamento Sexual do Homem",
que foi um imenso sucesso. Mas,
em 1953, quando saiu "O Comportamento Sexual da Mulher", a
reação foi brutal. A idéia de que o
homem comum seja um tarado é
aceitável; agora, não nos digam
que nossas mulheres e mães têm
fantasias e desejos.
Eram os tempos da caça às bruxas; a comissão Reece do Congresso americano investigava supostas "infiltrações comunistas"
nas fundações filantrópicas do
país. A comissão achou que Kinsey ameaçava a moralidade da
nação; ele devia ser um perigoso
comunista, não é? A Fundação
Rockfeller, que subvencionava a
pesquisa de Kinsey, se apavorou e
cortou os fundos.
Na verdade, "perigosa comunista" era a própria comissão Reece,
visto que ela queria subordinar o
trabalho científico a exigências
ideológicas, no melhor estilo da
ciência stalinista. Alguém se lembra de Lyssenko? Foi o biólogo
que destruiu a biologia soviética
negando as descobertas básicas
de Mendel porque não colavam
com o materialismo dialético do
catecismo marxista. Quem não
concordava com Lyssenko ia para
a Sibéria. Lyssenko é o padroeiro
dos que tentam usar a "ciência"
para confirmar suas ideologias e
crenças entre eles, os que afirmam
que existem práticas sexuais que
seriam "contra a natureza".
Para Kinsey, a expressão patológica não é a variedade dos desejos, mas o silêncio.
O silêncio alimenta exclusão e
culpa. É raro (obrigado, dr. Kinsey), mas acontece: há adolescentes que pensam ser os únicos no
mundo a ter "pensamentos impuros". Basta encontrá-los para entender os tormentos aos quais o
silêncio sobre o sexo pode condenar homens e mulheres. Como tolerar nosso próprio desejo se ele
nos aparece como uma aberração? Como viver se, no discurso
ao redor de nós, nada indica que
nosso desejo tenha o direito de
existir?
O silêncio sobre o sexo tem também um outro efeito. Ele pode
transformar as fantasias e as práticas sexuais em baluartes últimos do narcisismo. Assim: "Sou
um homem qualquer. Quando
transo, sou bem-comportado,
mas penso em coisas que não falo
nem para minha parceira. Graças
a esses porões escondidos de meu
desejo, mantenho a ilusão de que,
apesar de meu dia-a-dia cinza, eu
sou especial, inconfundível". A
armadilha narcisista mais antiga, a idéia de que não sou apenas
um entre outros, serve-se da sexualidade silenciada para confortar o sujeito na crença idiota de
sua excepcionalidade.
Onde estamos 50 anos depois de
Kinsey?
Estou lendo "Sexualidade e Saberes: Convenções e Fronteiras",
uma publicação (ótima) do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos, do
Instituto de Medicina Social da
Uerj. O instituto foi criado com o
apoio da Fundação Ford, que não
por isso é acusada de ser "comunista". O mundo mudou. A diversidade dos desejos é reconhecida.
Surgiu uma disciplina, a sexologia, que, por exemplo, convida os
casais a melhorar sua vida sexual
reconhecendo os desejos que cada
um esconde do parceiro. Kinsey
mal acreditaria seus olhos e ouvidos.
Entretanto voltam com força
vozes que Kinsey acharia familiares. São os fundamentalistas de
todo tipo que, nos EUA, tentaram
impedir o acesso aos cinemas que
projetavam "Kinsey". Por uma
vez, em lugar do papa ou de um
imame, podemos escolher o rabino Schmuley Boteach (autor de
um livro intitulado "Kosher
Sex").
Para Boteach, a obra de Kinsey
nos corrompeu, introduzindo "a
época da pornografia, do amor livre, da troca de casais" e mesmo
da percentagem de 50% de casais
que divorciam.
Um psicanalista perguntaria ao
rabino Boteach de onde vem seu
ódio pelos desejos "divergentes":
"Você se sente ameaçado pelo
quê, rabino?".
Já Kinsey, se encontrasse o rabino Boteach, agiria de outra forma, abriria sua pasta e sua caneta-tinteiro, puxaria um questionário e perguntaria calmamente:
"Rabino, com que idade você começou a se masturbar?".
@ - ccalligari@uol.com.br
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