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Crítica/coletânea
Contos intercalam a poesia e a brutalidade da "terra dos caubóis"
Chega ao país "Curto Alcance", de Annie Proulx, com história que inspirou o filme "O Segredo de Brokeback Mountain"
MICHEL LAUB
ESPECIAL PARA A FOLHA
Vencedora dos prêmios
Pulitzer e National
Book Award, mas ainda
pouco conhecida no Brasil, Annie Proulx não deixa de ser novidade no panorama da prosa
americana. O leitor que teve
contato com o seu universo por
meio de "O Segredo de Brokeback Mountain" (2005), adaptação lírica, melancólica e algo
romântica de Ang Lee para um
dos contos do agora lançado
"Curto Alcance", certamente
ficará surpreso pela secura, ironia e o quase intolerável grau
de violência destas histórias.
Nelas, a autora põe em cena o
Wyoming, a "terra dos caubóis", Estado cuja vida se divide
entre as paisagens deslumbrantes, que remetem ao imaginário do western, e as pequenas cidades onde circulam vaqueiros, motoristas de caminhão e gente que vive do turismo. Por toda parte, o lema não
escrito é "você que cuide da
porra de sua vida". Famílias se
desintegram, velhos acabam
sozinhos, mulheres enlouquecem isoladas em fazendas, mas
quem ainda tem braços para
trabalhar segue enfrentando
invernos terríveis, quedas dos
preços agrícolas, desemprego,
jornadas intermináveis.
O tom típico dos relatos é o
de um aparente distanciamento, cujo impacto vem da exatidão das descrições e da originalidade das metáforas: um cadáver é uma "lata de carne seca", a
respiração do gado no frio são
"balões de diálogo de histórias
em quadrinhos", alguém parece "um advogado especializado
em direitos sobre a água", mas a
discreta poesia dessas passagens é sempre intercalada com
a brutalidade -o filho que dá
uma surra no pai, a mãe que joga o bebê no rio, o peão morto
com uma chave de roda.
Não se engana quem vê na
mistura a sombra de William
Faulkner. Há ressonâncias e
possíveis homenagens ao autor
de "O Som e a Fúria", como na
história do deficiente mental
castrado por "se exibir" para
mulheres da vizinhança (quem
vive no inferno se satisfaz com
um gole d'água). Porque tanto
para Faulkner, que retratou um
sul assombrado pela herança
do escravismo, quanto para
Proulx, cujo horror poderia ter
como única origem a pobreza e
o atraso, a violência tem um caráter mítico, muito mais arquetípico do que histórico.
Caráter trágico
Faulkner tratou do tema
principalmente por meio da
subjetividade dos narradores
em primeira pessoa, cuja convicção, diz Mario Vargas Llosa,
potencializa a insensatez descrita. Seus personagens são
marcados por uma inadequação fundamental, nascida de
um trauma ou desejo íntimo, e
o signo que pontua suas trajetórias é o da luta, um combate
inglório contra o destino.
Proulx prefere um outro registro, geralmente em terceira
pessoa, uma visão panorâmica
que dá mais importância ao cenário que à psicologia. "Nenhuma carnificina ou crueldade
passada, nenhum acidente ou
assassinato ocorrido nas fazendolas ou nas encruzilhadas ermas com suas minguadas populações de três ou dezessete
habitantes, ou nos inseguros
parques para reboques de cidades mineiras, retardam a inundação da luz matinal", escreve.
Sob o peso dessa indiferença,
suas criaturas assumem um caráter trágico ainda mais acentuado. Alguns, como o astro de
rodeios Diamont Felts, do excelente Num Lamaçal, aceita
pagar no futuro o preço amargo
por suas escolhas do presente.
Outros, o Leeland Lee de "A
História de Jó", conto de título
sintomático, chegam a encarnar quase uma santidade em
meio a uma vida de revezes.
Para todos eles, é como se o
cotidiano de cercas partidas,
caminhonetes abarrotadas de
ferramentas e "pumas predadores que dizimam bezerros"
fosse mera distração antes do
fim inevitável, que qualquer
criança em Wyoming conhece.
Não por acaso, é assim que
termina "Brokeback Mountain": "Havia um espaço aberto
entre aquilo que ele sabia e
aquilo em que tentava acreditar, mas nada se podia fazer a
respeito". Nessa resignação
tortuosa, que mais cedo ou
mais tarde sublinha todas as cenas de "Curto Alcance", está a
única arma individual contra
um mundo feito apenas de hostilidade. Esteja ela nas campinas, nos barrancos, nas montanhas ou dentro de cada um.
MICHEL LAUB é autor dos romances "O Segundo Tempo" (2006) e "Longe da Água" (2004),
ambos da Companhia das Letras.
CURTO ALCANCE
Autor: Annie Proulx
Tradução: Adalgisa Campos da Silva
Editora: Intrínseca
Quanto: R$ 39,90 (337 págs.)
Avaliação: ótimo
Leia trecho
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