São Paulo, sábado, 28 de abril de 2007

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Crítica/coletânea

Contos intercalam a poesia e a brutalidade da "terra dos caubóis"

Chega ao país "Curto Alcance", de Annie Proulx, com história que inspirou o filme "O Segredo de Brokeback Mountain"

MICHEL LAUB
ESPECIAL PARA A FOLHA

Vencedora dos prêmios Pulitzer e National Book Award, mas ainda pouco conhecida no Brasil, Annie Proulx não deixa de ser novidade no panorama da prosa americana. O leitor que teve contato com o seu universo por meio de "O Segredo de Brokeback Mountain" (2005), adaptação lírica, melancólica e algo romântica de Ang Lee para um dos contos do agora lançado "Curto Alcance", certamente ficará surpreso pela secura, ironia e o quase intolerável grau de violência destas histórias.
Nelas, a autora põe em cena o Wyoming, a "terra dos caubóis", Estado cuja vida se divide entre as paisagens deslumbrantes, que remetem ao imaginário do western, e as pequenas cidades onde circulam vaqueiros, motoristas de caminhão e gente que vive do turismo. Por toda parte, o lema não escrito é "você que cuide da porra de sua vida". Famílias se desintegram, velhos acabam sozinhos, mulheres enlouquecem isoladas em fazendas, mas quem ainda tem braços para trabalhar segue enfrentando invernos terríveis, quedas dos preços agrícolas, desemprego, jornadas intermináveis.
O tom típico dos relatos é o de um aparente distanciamento, cujo impacto vem da exatidão das descrições e da originalidade das metáforas: um cadáver é uma "lata de carne seca", a respiração do gado no frio são "balões de diálogo de histórias em quadrinhos", alguém parece "um advogado especializado em direitos sobre a água", mas a discreta poesia dessas passagens é sempre intercalada com a brutalidade -o filho que dá uma surra no pai, a mãe que joga o bebê no rio, o peão morto com uma chave de roda.
Não se engana quem vê na mistura a sombra de William Faulkner. Há ressonâncias e possíveis homenagens ao autor de "O Som e a Fúria", como na história do deficiente mental castrado por "se exibir" para mulheres da vizinhança (quem vive no inferno se satisfaz com um gole d'água). Porque tanto para Faulkner, que retratou um sul assombrado pela herança do escravismo, quanto para Proulx, cujo horror poderia ter como única origem a pobreza e o atraso, a violência tem um caráter mítico, muito mais arquetípico do que histórico.

Caráter trágico
Faulkner tratou do tema principalmente por meio da subjetividade dos narradores em primeira pessoa, cuja convicção, diz Mario Vargas Llosa, potencializa a insensatez descrita. Seus personagens são marcados por uma inadequação fundamental, nascida de um trauma ou desejo íntimo, e o signo que pontua suas trajetórias é o da luta, um combate inglório contra o destino.
Proulx prefere um outro registro, geralmente em terceira pessoa, uma visão panorâmica que dá mais importância ao cenário que à psicologia. "Nenhuma carnificina ou crueldade passada, nenhum acidente ou assassinato ocorrido nas fazendolas ou nas encruzilhadas ermas com suas minguadas populações de três ou dezessete habitantes, ou nos inseguros parques para reboques de cidades mineiras, retardam a inundação da luz matinal", escreve.
Sob o peso dessa indiferença, suas criaturas assumem um caráter trágico ainda mais acentuado. Alguns, como o astro de rodeios Diamont Felts, do excelente Num Lamaçal, aceita pagar no futuro o preço amargo por suas escolhas do presente.
Outros, o Leeland Lee de "A História de Jó", conto de título sintomático, chegam a encarnar quase uma santidade em meio a uma vida de revezes.
Para todos eles, é como se o cotidiano de cercas partidas, caminhonetes abarrotadas de ferramentas e "pumas predadores que dizimam bezerros" fosse mera distração antes do fim inevitável, que qualquer criança em Wyoming conhece.
Não por acaso, é assim que termina "Brokeback Mountain": "Havia um espaço aberto entre aquilo que ele sabia e aquilo em que tentava acreditar, mas nada se podia fazer a respeito". Nessa resignação tortuosa, que mais cedo ou mais tarde sublinha todas as cenas de "Curto Alcance", está a única arma individual contra um mundo feito apenas de hostilidade. Esteja ela nas campinas, nos barrancos, nas montanhas ou dentro de cada um.


MICHEL LAUB é autor dos romances "O Segundo Tempo" (2006) e "Longe da Água" (2004), ambos da Companhia das Letras.

CURTO ALCANCE
Autor: Annie Proulx
Tradução: Adalgisa Campos da Silva
Editora: Intrínseca
Quanto: R$ 39,90 (337 págs.)
Avaliação: ótimo
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