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"O Mickey Mouse está conquistando o mundo"
ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas
"The Big One" desligou o telefone e gritou: "Não, meu amigo, eu não vou dar entrevista
de merda nenhuma! Ponha-se
daqui para fora! Dane-se que o
senhor marcou com antecedência, "fuck you'!... O momento não é próprio... Não tenho condições psicológicas de
falar nada sobre a economia
global!..".
(O homem estava chorando,
despenteado, muito diferente
do "layout" de alto executivo
de um grande banco recém-fundido. Eu estava perplexo, diante do dono de US$ 1
trilhão. Pela janela, Nova York
brilhava. Eu já ia saindo,
quando o telefone tocou de novo. O homem tremia, e sua voz
virou um gemido: "Não, Alba...
Não é justo você me tratar assim, como se eu fosse um "excluído' qualquer... Eu sempre
te amei, Alba... Não desligue...
Não diga isso!...". O homem me
olhou de olhos vermelhos e
molhados....)
"Fique aí. Mudei de idéia. Eu
vou lhe dizer tudo! Ela me largou... O senhor está vendo um
homem acabado. Alba não me
quer mais... Eu não tenho mais
nada a perder, como os proletários de 1848... Ah! Ah! Eu sou
o excluído de Alba... Mas vou
falar tudo, em "off'! Chame-me
com nome falso..."
(Dei-lhe o nome de "Big
One". Suas lágrimas caíam,
enquanto ele falava sobre a
globalização da economia.
Meu gravador rodava, e eu
mal me mexia, para não atrapalhar a explosão de verdade
do grande "mogul" da economia mundial que, ali, com mágica dor-de-corno, resolvera
me "entregar" tudo.)
"Quem está invadindo o
mundo não sou eu. Não é ninguém. São as coisas! Quem está
invadindo o mundo é o Mickey
Mouse e a Microsoft, na maior
guerra silenciosa da história.
Estamos conquistando o mundo... Esse papo de globalização
é tudo merda... Estamos americanizando o mundo, isso
sim... Finalmente... Agora, sem
Guerra Fria, com a falência
das economias nacionais, dos
"estados-nação'..." (Sua voz vinha rouca de dor. Ele falava
como uma vingança por anos
de rígida discrição bancária.)
"Estamos impondo um sistema econômico ao mundo! Como? Diferenças culturais? Danem-se, meu amigo, adaptem-se os atrasados! É claro
que sei da beleza da arte da
Tailândia, mas precisamos repassar o custo da crise aos países emergentes... Danem-se!
Talvez tenhamos que inventar
um mercado da miséria, para
transformar o excluído em freguês... O "shit market', aha!...
Pouco me importam as razões
culturais, meu amigo, só existe
uma razão hoje em dia, a razão do capital, a razão americana, não adianta chorar!" (O
"Big One" enxugou as lágrimas.) "A desigualdade entre os
homens é um dado natural da
realidade, a seleção dos mais
fortes, ele é mais forte que eu...
Alba acha isso. Ela é a "demanda', eu sou a "oferta'."
"Esses países atrasados não
fizeram o "dever de casa', agora dancem suas danças típicas
e arcaicas... A América é um
país de mercadores, não de enfermeiros... Mercado para nós
não é metáfora neo-liberal
não, mercado é guerra! É como
o amor, meu amigo..." (Tremeram-lhe as mãos.)
"Para Alba, eu sou uma mercadoria sem valor... Apareceu
um outro concorrente..." (O telefone tocou de novo.) "Não...
Minha Alba... Ele está aí com
você?... Como? Ele te ama mais
do que eu? É impossível! Quantas vezes? Cinco? Sem tirar?
Numa noite?... Alba, por que
você gosta de me fazer sofrer?...
Alba, não desligue de novo, Alba!... Viu, amigo, exclusão é isso... Pode escrever tudo... Dane-se!..." (O "Big One" falava
baixo para si mesmo, como
num sonho.)
"Ninguém controla as forças
do mercado, porque simplesmente não há mais "mercadorias' tradicionais. Hoje, é o dinheiro se vendendo a si mesmo
como um espírito sem corpo.
Marx tinha razão... É isso mesmo. Leia o "Manifesto Comunista'!... A luta de classes agora
é entre países. A burguesia
americana empresta dinheiro
para a burguesia coreana, que
rouba tudo e quebra o país. Aí,
o povo coreano é que vai passar fome para pagar o empréstimo que o FMI deu, com o dinheiro dos cidadãos americanos, para os bancos da burguesia coreana pagarem os bancos
da burguesia americana."
"Esses países pobres de merda, como o seu, não podemos
abandoná-los porque precisamos de fregueses, mas eles não
podem crescer muito, senão
eles viram concorrentes. Esse é
o dilema: não podemos deixar
o doente morrer, mas não podemos curá-lo também... É isso
aí, meu amigo... Dei minha vida a essa mulher, e ela planejou tudo para me trair. E não
há conspiração nenhuma nisso, ninguém "planeja' conquistar o mundo, senhor jornalista,
o capital vai sozinho, é um imperialismo sem comandantes.
Eu não sou diplomata, não
tem esse papo de benefícios de
"livre mercado democrático',
"democracy, my ass!'... Estamos numa guerra de sobrevivência... O lastro do dólar é a
esquadra americana... O que
será de mim sem Alba?"
"Estamos comprando o mundo, senhor, estamos comprando o seu país também... Tá
cheio de executivo de banco
lá... Todos fazendo "mergers
and acquisitions'... Só se faz isso hoje no mundo... Tomar
conta de tudo... Vocês abriram
a economia demais. Nós, não...
A América será o único "estado-nação' do planeta... Livre
mercado é para os outros... Nós
somos um país nacionalista...
Quero ver vocês venderem sapato e suco de laranja aqui...
Ah! Ah!"
"Estamos no fim do século, e
os intelectuais só falam em
"pós-isto' e "pós-aquilo'. A única coisa que não é "pós' é a
burguesia internacional. O senhor já ouviu falar em
"pós-burguesia'? Ah! Ah!... A
burguesia não muda, meu
amigo, a burguesia é a natureza humana!"
(Seus dedos já ligavam o telefone "viva voz". Do outro lado,
a voz de mulher falava, arfante, quase gritando: "Hey,
Mr.Big! Eu estou com o Chakib. Sim, ele é muçulmano,
Chakib Hassam!... Ele é um
emergente... Ah! Ah!... Está ouvindo o gemido dele? Você fala
em "competição' e "eficiência'?
Pois ele é mais eficiente e
maior que você. Os iranianos
são enormes!... Ah! Ah! Vai,
Chakib... Aaahhh!". O "Big
One" soluçava baixinho, enquanto desligava.)
"Viu? Livre mercado é isso!
Não me importo, é o fim de tudo! Estamos na véspera de um
mundo sem países! Haverá
uma grande onda de miséria,
seguida de um feroz antiamericanismo, fundamentalismos
islâmicos, latinos, ditaduras,
rancor, fome e morte... Com a
miséria e a loucura, não haverá democracia. Haverá o renascimento de novos fascismos, totalitários, sangrentos,
genocidas... Não faz mal... O
Suharto matou 1 milhão na Indonésia, e nós apoiávamos
ele... Até o Pol Pot a gente já
apoiou, contra o Vietnã. Ditadura, às vezes, é até mais prático de negociar... Tudo faremos
pelo livre mercado!"
"E agora, a última notícia,
meu amigo: não há mais o que
fazer, só ganhar tempo e escravizar os outros. Não há mais
controle de nada... A economia
vai sozinha... As coisas venceram... Esse papo de democracia global, isso é bosta de boi
("bullshit'); o mundo não vai
acabar num "big bang', mas
num gemido contábil! Essa é a
única verdade. Publique tudo:
"Um dia o mundo será uma
grande economia sem sociedade!'."
(Estava ali a grande "verdade". Enquanto eu fugia pelos
corredores da grande corporação, ouvia no fundo os soluços
grossos do "Big One": "Alba,
Alba... Meu amor!".)
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