São Paulo, terça, 28 de abril de 1998

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"O Mickey Mouse está conquistando o mundo"

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas


"The Big One" desligou o telefone e gritou: "Não, meu amigo, eu não vou dar entrevista de merda nenhuma! Ponha-se daqui para fora! Dane-se que o senhor marcou com antecedência, "fuck you'!... O momento não é próprio... Não tenho condições psicológicas de falar nada sobre a economia global!..".
(O homem estava chorando, despenteado, muito diferente do "layout" de alto executivo de um grande banco recém-fundido. Eu estava perplexo, diante do dono de US$ 1 trilhão. Pela janela, Nova York brilhava. Eu já ia saindo, quando o telefone tocou de novo. O homem tremia, e sua voz virou um gemido: "Não, Alba... Não é justo você me tratar assim, como se eu fosse um "excluído' qualquer... Eu sempre te amei, Alba... Não desligue... Não diga isso!...". O homem me olhou de olhos vermelhos e molhados....)
"Fique aí. Mudei de idéia. Eu vou lhe dizer tudo! Ela me largou... O senhor está vendo um homem acabado. Alba não me quer mais... Eu não tenho mais nada a perder, como os proletários de 1848... Ah! Ah! Eu sou o excluído de Alba... Mas vou falar tudo, em "off'! Chame-me com nome falso..."
(Dei-lhe o nome de "Big One". Suas lágrimas caíam, enquanto ele falava sobre a globalização da economia. Meu gravador rodava, e eu mal me mexia, para não atrapalhar a explosão de verdade do grande "mogul" da economia mundial que, ali, com mágica dor-de-corno, resolvera me "entregar" tudo.)
"Quem está invadindo o mundo não sou eu. Não é ninguém. São as coisas! Quem está invadindo o mundo é o Mickey Mouse e a Microsoft, na maior guerra silenciosa da história. Estamos conquistando o mundo... Esse papo de globalização é tudo merda... Estamos americanizando o mundo, isso sim... Finalmente... Agora, sem Guerra Fria, com a falência das economias nacionais, dos "estados-nação'..." (Sua voz vinha rouca de dor. Ele falava como uma vingança por anos de rígida discrição bancária.)
"Estamos impondo um sistema econômico ao mundo! Como? Diferenças culturais? Danem-se, meu amigo, adaptem-se os atrasados! É claro que sei da beleza da arte da Tailândia, mas precisamos repassar o custo da crise aos países emergentes... Danem-se! Talvez tenhamos que inventar um mercado da miséria, para transformar o excluído em freguês... O "shit market', aha!... Pouco me importam as razões culturais, meu amigo, só existe uma razão hoje em dia, a razão do capital, a razão americana, não adianta chorar!" (O "Big One" enxugou as lágrimas.) "A desigualdade entre os homens é um dado natural da realidade, a seleção dos mais fortes, ele é mais forte que eu... Alba acha isso. Ela é a "demanda', eu sou a "oferta'."
"Esses países atrasados não fizeram o "dever de casa', agora dancem suas danças típicas e arcaicas... A América é um país de mercadores, não de enfermeiros... Mercado para nós não é metáfora neo-liberal não, mercado é guerra! É como o amor, meu amigo..." (Tremeram-lhe as mãos.)
"Para Alba, eu sou uma mercadoria sem valor... Apareceu um outro concorrente..." (O telefone tocou de novo.) "Não... Minha Alba... Ele está aí com você?... Como? Ele te ama mais do que eu? É impossível! Quantas vezes? Cinco? Sem tirar? Numa noite?... Alba, por que você gosta de me fazer sofrer?... Alba, não desligue de novo, Alba!... Viu, amigo, exclusão é isso... Pode escrever tudo... Dane-se!..." (O "Big One" falava baixo para si mesmo, como num sonho.)
"Ninguém controla as forças do mercado, porque simplesmente não há mais "mercadorias' tradicionais. Hoje, é o dinheiro se vendendo a si mesmo como um espírito sem corpo. Marx tinha razão... É isso mesmo. Leia o "Manifesto Comunista'!... A luta de classes agora é entre países. A burguesia americana empresta dinheiro para a burguesia coreana, que rouba tudo e quebra o país. Aí, o povo coreano é que vai passar fome para pagar o empréstimo que o FMI deu, com o dinheiro dos cidadãos americanos, para os bancos da burguesia coreana pagarem os bancos da burguesia americana."
"Esses países pobres de merda, como o seu, não podemos abandoná-los porque precisamos de fregueses, mas eles não podem crescer muito, senão eles viram concorrentes. Esse é o dilema: não podemos deixar o doente morrer, mas não podemos curá-lo também... É isso aí, meu amigo... Dei minha vida a essa mulher, e ela planejou tudo para me trair. E não há conspiração nenhuma nisso, ninguém "planeja' conquistar o mundo, senhor jornalista, o capital vai sozinho, é um imperialismo sem comandantes. Eu não sou diplomata, não tem esse papo de benefícios de "livre mercado democrático', "democracy, my ass!'... Estamos numa guerra de sobrevivência... O lastro do dólar é a esquadra americana... O que será de mim sem Alba?"
"Estamos comprando o mundo, senhor, estamos comprando o seu país também... Tá cheio de executivo de banco lá... Todos fazendo "mergers and acquisitions'... Só se faz isso hoje no mundo... Tomar conta de tudo... Vocês abriram a economia demais. Nós, não... A América será o único "estado-nação' do planeta... Livre mercado é para os outros... Nós somos um país nacionalista... Quero ver vocês venderem sapato e suco de laranja aqui... Ah! Ah!"
"Estamos no fim do século, e os intelectuais só falam em "pós-isto' e "pós-aquilo'. A única coisa que não é "pós' é a burguesia internacional. O senhor já ouviu falar em "pós-burguesia'? Ah! Ah!... A burguesia não muda, meu amigo, a burguesia é a natureza humana!"
(Seus dedos já ligavam o telefone "viva voz". Do outro lado, a voz de mulher falava, arfante, quase gritando: "Hey, Mr.Big! Eu estou com o Chakib. Sim, ele é muçulmano, Chakib Hassam!... Ele é um emergente... Ah! Ah!... Está ouvindo o gemido dele? Você fala em "competição' e "eficiência'? Pois ele é mais eficiente e maior que você. Os iranianos são enormes!... Ah! Ah! Vai, Chakib... Aaahhh!". O "Big One" soluçava baixinho, enquanto desligava.)
"Viu? Livre mercado é isso! Não me importo, é o fim de tudo! Estamos na véspera de um mundo sem países! Haverá uma grande onda de miséria, seguida de um feroz antiamericanismo, fundamentalismos islâmicos, latinos, ditaduras, rancor, fome e morte... Com a miséria e a loucura, não haverá democracia. Haverá o renascimento de novos fascismos, totalitários, sangrentos, genocidas... Não faz mal... O Suharto matou 1 milhão na Indonésia, e nós apoiávamos ele... Até o Pol Pot a gente já apoiou, contra o Vietnã. Ditadura, às vezes, é até mais prático de negociar... Tudo faremos pelo livre mercado!"
"E agora, a última notícia, meu amigo: não há mais o que fazer, só ganhar tempo e escravizar os outros. Não há mais controle de nada... A economia vai sozinha... As coisas venceram... Esse papo de democracia global, isso é bosta de boi ("bullshit'); o mundo não vai acabar num "big bang', mas num gemido contábil! Essa é a única verdade. Publique tudo: "Um dia o mundo será uma grande economia sem sociedade!'."
(Estava ali a grande "verdade". Enquanto eu fugia pelos corredores da grande corporação, ouvia no fundo os soluços grossos do "Big One": "Alba, Alba... Meu amor!".)



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