São Paulo, quarta, 28 de maio de 1997.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ANÁLISE
O mito Bituca-Nascimento, vulcão antigo, renasce

MARCIO BORGES
especial para a Folha

Bituca nunca descansou de matar um leão por dia, nascido e criado no trampo cotidiano de sobreviver, curumim preto na selva branca, um índio de Guanajuato. Ou do mundo? Sei lá, perguntem na Dinamarca. Ou no Japão. Pensando bem, eles também não devem saber. Porque estou falando de Bituca. E eles conhecem, no máximo, Milton Nascimento.
Todo santo dia nos vemos envolvidos em formação social, hierarquização de valores, construção de mitos, e isso me deixa perplexo. Eu mesmo misturei tanto minhas memórias que quase não consigo separar Bituca do ícone Milton.
Bituca é íntimo e táctil. Milton, um ser híbrido formado de um boné, uma figura de totem e uma aura de gênio. O que mais me espanta é que essas duas figuras se superpuseram de forma tão natural em minha mente que me pergunto se tudo realmente aconteceu comigo.
De qualquer modo, de Bituca eu ainda posso falar. Ainda é meu irmão amado, engraçado, malicioso, cheio de vida e com um repertório inexcedível de histórias.
Este mesmo Bituca é também o meu genial parceiro, um antiquíssimo vulcão, que sempre nos surpreende porque derrama -junto com cinza e lava- uma ofuscante luz de singeleza e água cristalina.
Deste Bituca eu falo que, com certeza, é quem sustenta o pesado fardo de ser ele mesmo, Milton Nascimento. Um ser público revestindo a carapuça de um tímido. Daquela timidez que dói, tartaruga que só se espoja em alto-mar.
Nós, o seu povo de Belo Horizonte, jogamos o Bituca na fogueira do mundo e nem ao menos saímos de casa para ver. Fico pensando no Bituca e vejo que força tem este homem. O que fez e tem feito para continuar na arena. Pelo prazer de olhar para o lado e dizer "você vem nessa comigo".
Eu mesmo já joguei a toalha muitas vezes e disse: agora torço pelo Skank, pelo Sepultura, que pode até mesmo cuspir neste tal de Clube da Esquina, que é apenas um monumento que ajudei a erigir há muito tempo, contra uma ditadura à sombra da qual -e ignorantes das lutas travadas- esses meninos nasceram com direito de dizer as besteiras que quisessem.
Poderia dizer que isto equivale a chutar a estátua de Tiradentes. Não altera a mitologia.
Divago sobre essas coisas a propósito da obra Nascimento, que Bituca mais uma vez, contrariando todos os carniceiros de plantão, joga na roda. Portanto, ainda não será desta vez o necrológio.
Bituca está acostumado a matar um leão por dia. Mas o pobre do Milton Nascimento tem que enfrentar muito mais do que leões na sua arena. A resposta de Milton, como sempre, foi dada por Bituca, de dentro da carapaça tímida e sempre genial... Nascimento por fora e Bituca por dentro. A mídia que se vire para saber onde começa um e termina o outro. Eu já desisti.


Márcio Borges é letrista, parceiro de Milton Nascimento e um dos autores de 'Clube da Esquina'


Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright 1997 Empresa Folha da Manhã