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ANÁLISE
O mito Bituca-Nascimento, vulcão antigo, renasce
MARCIO BORGES
especial para a Folha
Bituca nunca descansou de matar um leão por dia, nascido e criado no trampo cotidiano de sobreviver, curumim preto na selva
branca, um índio de Guanajuato.
Ou do mundo? Sei lá, perguntem
na Dinamarca. Ou no Japão. Pensando bem, eles também não devem saber. Porque estou falando
de Bituca. E eles conhecem, no
máximo, Milton Nascimento.
Todo santo dia nos vemos envolvidos em formação social, hierarquização de valores, construção de
mitos, e isso me deixa perplexo. Eu
mesmo misturei tanto minhas memórias que quase não consigo separar Bituca do ícone Milton.
Bituca é íntimo e táctil. Milton,
um ser híbrido formado de um boné, uma figura de totem e uma aura de gênio. O que mais me espanta
é que essas duas figuras se superpuseram de forma tão natural em
minha mente que me pergunto se
tudo realmente aconteceu comigo.
De qualquer modo, de Bituca eu
ainda posso falar. Ainda é meu irmão amado, engraçado, malicioso, cheio de vida e com um repertório inexcedível de histórias.
Este mesmo Bituca é também o
meu genial parceiro, um antiquíssimo vulcão, que sempre nos surpreende porque derrama -junto
com cinza e lava- uma ofuscante
luz de singeleza e água cristalina.
Deste Bituca eu falo que, com
certeza, é quem sustenta o pesado
fardo de ser ele mesmo, Milton
Nascimento. Um ser público revestindo a carapuça de um tímido.
Daquela timidez que dói, tartaruga
que só se espoja em alto-mar.
Nós, o seu povo de Belo Horizonte, jogamos o Bituca na fogueira do mundo e nem ao menos saímos de casa para ver. Fico pensando no Bituca e vejo que força tem
este homem. O que fez e tem feito
para continuar na arena. Pelo prazer de olhar para o lado e dizer
"você vem nessa comigo".
Eu mesmo já joguei a toalha muitas vezes e disse: agora torço pelo
Skank, pelo Sepultura, que pode
até mesmo cuspir neste tal de Clube da Esquina, que é apenas um
monumento que ajudei a erigir há
muito tempo, contra uma ditadura à sombra da qual -e ignorantes
das lutas travadas- esses meninos nasceram com direito de dizer
as besteiras que quisessem.
Poderia dizer que isto equivale a
chutar a estátua de Tiradentes.
Não altera a mitologia.
Divago sobre essas coisas a propósito da obra Nascimento, que
Bituca mais uma vez, contrariando todos os carniceiros de plantão,
joga na roda. Portanto, ainda não
será desta vez o necrológio.
Bituca está acostumado a matar
um leão por dia. Mas o pobre do
Milton Nascimento tem que enfrentar muito mais do que leões na
sua arena. A resposta de Milton,
como sempre, foi dada por Bituca,
de dentro da carapaça tímida e
sempre genial... Nascimento por
fora e Bituca por dentro. A mídia
que se vire para saber onde começa
um e termina o outro. Eu já desisti.
Márcio Borges é letrista, parceiro de Milton Nascimento e um dos autores de 'Clube da Esquina'
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