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São Paulo, quarta-feira, 28 de maio de 2003

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MARCELO COELHO

À procura do inimigo

Uma das melhores coisas de "Tiros em Columbine", documentário sobre a cultura da violência e do armamentismo nos Estados Unidos, é que seja um americano quem tenha feito o filme.
E que americano! O diretor Michael Moore aparece o tempo todo na tela. É um daqueles brancos obesos, de óculos grossos, camisa xadrez e boné de beisebol, que, com nossa arrogância brasileira, teríamos tudo para chamar de perfeito exemplo do ianque babaca. Ou pior. Como ele está muitas vezes com um rifle na mão para demonstrar sua tese de como é fácil adquirir armas nos Estados Unidos e sair dando tiros em inocentes-, Michael Moore parece, ele próprio, um sério candidato a tornar-se serial killer em algum momento.
Sangue-frio ele tem, sem dúvida. Nunca perde a oportunidade de fazer perguntas desagradáveis e provocativas. Assim, depois de esperar um bocado, ele consegue entrevistar a assessora de relações públicas de uma rede de supermercados, a K-Mart.
Foi numa loja dessas, em Littleton, que dois garotos compraram as balas que usaram para matar 14 colegas e um professor do colégio em que estudavam. Ficamos sabendo que as balas são vendidas sem nenhum controle. A câmera filma, então, o ato de protesto organizado por Moore. Ele está na sede nacional da rede de supermercados, com dois sobreviventes da tragédia (um deles ficou tetraplégico), para "devolver a mercadoria".
Chega a relações-públicas do supermercado, sem saber exatamente que tipo de louco é aquele; Moore explica o propósito da visita. Hipócrita e embaraçada ao mesmo tempo, a assessora diz sentir pena das vítimas; está tentando, é claro, livrar-se o mais rápido possível do visitante importuno. Sorrindo, sempre simpático, Michael Moore lhe diz que não está ali para ouvir enrolação de assessor de imprensa.
O aspecto meio maluco do documentarista ajuda-o a se enturmar com seus, digamos, adversários: vendedores de armas, paranóicos da defesa pessoal e os adeptos da Associação Nacional do Rifle -cujo presidente, o ator Charlton Heston, é entrevistado por Michael Moore no trecho mais criticado do filme.
Defensor do direito de cada cidadão americano à posse de armas de fogo, Charlton Heston é uma figura bastante antipática. Mas muitos críticos observaram que Michael Moore errou a mão ao entrevistá-lo, e que o velho ator fica parecendo mais inofensivo e frágil do que seria de esperar. É verdade.
E é também verdade que, fazendo um documentário muito militante e nada imparcial, Michael Moore nos deixa várias vezes desconfiados de que está manipulando dados, cenas e entrevistas. Não é difícil notar cortes estratégicos de cena, argumentações simplificadas e expedientes grosseiros para demonstrar determinada idéia, como o de sair andando pelas ruas de um bairro tido como perigoso para mostrar que não existe tanto perigo assim.
Mas fiquei pensando se o principal defeito de "Tiros em Columbine" não seria, no fundo, mais a ambiguidade do que o empenho manipulador.
Durante boa parte do documentário, somos levados a crer que seria necessário proibir a venda indiscriminada de armas nos Estados Unidos. É assim que figuras como Charlton Heston, defensores da tese oposta, surgem sob uma luz extremamente antipática.
Mais adiante, o filme mostra que no Canadá é livre a venda de armas; contudo, são baixíssimos os índices de criminalidade naquele país. O filme de Moore envereda por outra explicação: haveria uma "cultura do medo" nos Estados Unidos, uma espécie de paranóia generalizada. Aparece um breve e divertido resumo de todos os medos do americano comum: índios, marcianos, abelhas, cobras, russos, colesterol, tudo o que quisermos, sugere Moore, numa espécie de máquina que estimula os cidadãos à violência e ao consumismo.
Está certo. Mas não sei se o filme consegue ficar livre da paranóia que denuncia. A perseguição de Moore a Charlton Heston é, nitidamente, a tentativa de achar um bode expiatório que encarnasse essa conspiração belicista americana. As diversas cenas em que o documentarista aparece procurando alguma pessoa física responsável pela cultura da violência são simétricas àquelas em que puras idéias, caricaturas, desenhos animados e colagens de noticiário ocupam o primeiro plano. Entre o vilão clássico e um anônimo "sistema", Michael Moore está à procura de seu inimigo.
De certo modo, é como se sua própria agressividade ficasse um tanto à solta. Dentro de uma agência bancária, com um rifle na mão, ou "invadindo" casas numa cidade do Canadá para mostrar que lá as pessoas não trancam as portas, o diretor parece em vários momentos flertar com a idéia de que ele poderia, também, representar algum tipo de ameaça. Isso às vezes é irônico, às vezes parece inconsciente.
O fato de Moore aparecer diante das câmeras durante a maior parte do filme tem outra ambiguidade. A feiúra, a insistência e o bom humor do documentarista parecem servir de contraponto ao mundo de aparências certinhas, hipócritas e intimidadas de tantos assessores de relações públicas e apresentadores de TV. Ao mesmo tempo, Moore tem tudo para se tornar também parte do espetáculo; como se fosse um misto de Bussunda com Ernesto Varela (o repórter cínico encarnado por Marcelo Tas), ele bem que poderia fazer parte de um programa cômico na televisão.
Tanto melhor. Sem essas ambiguidades, "Tiros em Columbine" ficaria bem menos interessante; e, ainda que possamos acusá-lo de manipular o público, aposta muito mais na sua inteligência.


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