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MARCELO COELHO
À procura do inimigo
Uma das melhores coisas de
"Tiros em Columbine", documentário sobre a cultura da
violência e do armamentismo nos
Estados Unidos, é que seja um
americano quem tenha feito o filme.
E que americano! O diretor Michael Moore aparece o tempo todo na tela. É um daqueles brancos obesos, de óculos grossos, camisa
xadrez e boné de beisebol, que,
com nossa arrogância brasileira,
teríamos tudo para chamar de
perfeito exemplo do ianque babaca. Ou pior. Como ele está muitas
vezes com um rifle na mão para
demonstrar sua tese de como é fácil adquirir armas nos Estados
Unidos e sair dando tiros em inocentes-, Michael Moore parece,
ele próprio, um sério candidato a
tornar-se serial killer em algum
momento.
Sangue-frio ele tem, sem dúvida. Nunca perde a oportunidade
de fazer perguntas desagradáveis
e provocativas. Assim, depois de
esperar um bocado, ele consegue
entrevistar a assessora de relações
públicas de uma rede de supermercados, a K-Mart.
Foi numa loja dessas, em Littleton, que dois garotos compraram
as balas que usaram para matar
14 colegas e um professor do colégio em que estudavam. Ficamos
sabendo que as balas são vendidas sem nenhum controle. A câmera filma, então, o ato de protesto organizado por Moore. Ele
está na sede nacional da rede de
supermercados, com dois sobreviventes da tragédia (um deles ficou
tetraplégico), para "devolver a
mercadoria".
Chega a relações-públicas do
supermercado, sem saber exatamente que tipo de louco é aquele;
Moore explica o propósito da visita. Hipócrita e embaraçada ao
mesmo tempo, a assessora diz
sentir pena das vítimas; está tentando, é claro, livrar-se o mais rápido possível do visitante importuno. Sorrindo, sempre simpático,
Michael Moore lhe diz que não
está ali para ouvir enrolação de
assessor de imprensa.
O aspecto meio maluco do documentarista ajuda-o a se enturmar com seus, digamos, adversários: vendedores de armas, paranóicos da defesa pessoal e os
adeptos da Associação Nacional
do Rifle -cujo presidente, o ator
Charlton Heston, é entrevistado
por Michael Moore no trecho
mais criticado do filme.
Defensor do direito de cada cidadão americano à posse de armas de fogo, Charlton Heston é
uma figura bastante antipática.
Mas muitos críticos observaram
que Michael Moore errou a mão
ao entrevistá-lo, e que o velho
ator fica parecendo mais inofensivo e frágil do que seria de esperar. É verdade.
E é também verdade que, fazendo um documentário muito militante e nada imparcial, Michael
Moore nos deixa várias vezes desconfiados de que está manipulando dados, cenas e entrevistas. Não
é difícil notar cortes estratégicos
de cena, argumentações simplificadas e expedientes grosseiros para demonstrar determinada
idéia, como o de sair andando pelas ruas de um bairro tido como
perigoso para mostrar que não
existe tanto perigo assim.
Mas fiquei pensando se o principal defeito de "Tiros em Columbine" não seria, no fundo, mais a
ambiguidade do que o empenho
manipulador.
Durante boa parte do documentário, somos levados a crer
que seria necessário proibir a venda indiscriminada de armas nos
Estados Unidos. É assim que figuras como Charlton Heston, defensores da tese oposta, surgem sob
uma luz extremamente antipática.
Mais adiante, o filme mostra
que no Canadá é livre a venda de
armas; contudo, são baixíssimos
os índices de criminalidade naquele país. O filme de Moore envereda por outra explicação: haveria uma "cultura do medo" nos
Estados Unidos, uma espécie de
paranóia generalizada. Aparece
um breve e divertido resumo de
todos os medos do americano comum: índios, marcianos, abelhas,
cobras, russos, colesterol, tudo o
que quisermos, sugere Moore, numa espécie de máquina que estimula os cidadãos à violência e ao
consumismo.
Está certo. Mas não sei se o filme consegue ficar livre da paranóia que denuncia. A perseguição
de Moore a Charlton Heston é, nitidamente, a tentativa de achar
um bode expiatório que encarnasse essa conspiração belicista
americana. As diversas cenas em
que o documentarista aparece
procurando alguma pessoa física
responsável pela cultura da violência são simétricas àquelas em
que puras idéias, caricaturas, desenhos animados e colagens de
noticiário ocupam o primeiro
plano. Entre o vilão clássico e um
anônimo "sistema", Michael
Moore está à procura de seu inimigo.
De certo modo, é como se sua
própria agressividade ficasse um
tanto à solta. Dentro de uma
agência bancária, com um rifle
na mão, ou "invadindo" casas
numa cidade do Canadá para
mostrar que lá as pessoas não
trancam as portas, o diretor parece em vários momentos flertar
com a idéia de que ele poderia,
também, representar algum tipo
de ameaça. Isso às vezes é irônico,
às vezes parece inconsciente.
O fato de Moore aparecer diante das câmeras durante a maior
parte do filme tem outra ambiguidade. A feiúra, a insistência e
o bom humor do documentarista
parecem servir de contraponto ao
mundo de aparências certinhas,
hipócritas e intimidadas de tantos assessores de relações públicas
e apresentadores de TV. Ao mesmo tempo, Moore tem tudo para
se tornar também parte do espetáculo; como se fosse um misto de
Bussunda com Ernesto Varela (o
repórter cínico encarnado por
Marcelo Tas), ele bem que poderia fazer parte de um programa
cômico na televisão.
Tanto melhor. Sem essas ambiguidades, "Tiros em Columbine"
ficaria bem menos interessante; e,
ainda que possamos acusá-lo de
manipular o público, aposta muito mais na sua inteligência.
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