São Paulo, Sexta-feira, 28 de Maio de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

'Barril de Pólvora' recolhe alma em pedaços do povo iugoslavo


"Meu filme é um grito. Precisamos acordar", diz à Folha o iugoslavo Goran Paskaljevic, diretor do filme sérvio que estréia hoje em São Paulo


ERIKA SALLUM
da Reportagem Local

É noite em Belgrado, coração da Sérvia. O que seria apenas uma batida de carros se transforma numa briga quase fatal. Perto dali, dois velhos amigos treinam boxe enquanto fazem confissões -um dormiu com a mulher do outro. Mais uma situação-limite num lugar instável há quase dez anos.
Tragicômica metáfora da violência, "Barril de Pólvora", filme que estréia hoje em São Paulo, foca um personagem pouco comentado nos noticiários sobre o caos nos Bálcãs: a alma sérvia.
Dirigido pelo iugoslavo Goran Paskaljevic, 52, o longa-metragem foi lançado no ano passado. Meses depois, a Otan iniciaria sua ofensiva contra o regime do ditador Slobodan Milosevic.
Na tela, o diretor -com mais de 30 anos de carreira e uma bagagem que inclui filmes como "Tango Argentino" (92) e "Someone's Else America" (95)- realiza uma obra quase premonitória, com indivíduos à beira de um ataque, que, sob uma aparente normalidade, escondem um universo em ruínas.
Ao mesmo tempo, ao filmar pessoas comuns, Paskaljevic dá rosto a um povo que nos últimos tempos ganhou o status de inimigo.
"Meu filme é como um grito. Quero mostrar a verdadeira mentalidade balcânica. Somos exagerados, como vocês, latinos. Mas estamos vivendo um período muito triste e duro, que está tornando meu povo mais violento", disse o diretor à Folha, por telefone, de Paris, onde vive atualmente.
O roteiro de "Barril de Pólvora" se baseia na peça homônima de Dejan Dukovski, um escritor macedônio de 26 anos. Mas por que um macedônio para retratar o povo sérvio? "A Macedônia fez parte da Iugoslávia e ainda mora no meu coração", contou Paskaljevic.
Junto com Dukovski, ele retrabalhou o texto durante meses, acrescentando ao script mais personagens, política e violência. "A vida é violenta em Belgrado, e eu precisava mostrar ao mundo o estado de alma do meu povo."
E que estado é esse? Sem ligações diretas, homes e mulheres se cruzam nas ruas escuras de Belgrado, numa única noite. A ação é fragmentada, como a própria Iugoslávia e suas ex-regiões.
Uma cena é particularmente reveladora: passageiros aguardam num ônibus o motorista terminar o café. Um jovem, inconformado com a situação, "rouba" o veículo e passa a agredir quem está nele.
"Vocês viveram 500 anos sob domínio turco. Lembram-se dos alemães? Vocês precisam de uma nova guerra para acordar", diz o rapaz, com um punhal na mão.
Tudo é trágico, mas estranhamente engraçado. "O humor, ainda que negro, foi o que nos restou", constata o diretor.
O longa-metragem venceu o prêmio da crítica (Fipresci) no Festival de Veneza de 98. Em Belgrado, onde enfrentou a oposição do governo de Milosevic e ficou em cartaz numa tímida sala de cinema, foi visto por 200 mil pessoas -um número alto para a cidade de 2,2 milhões de habitantes.
A produção contou com financiamento da França, Macedônia, Grécia e Turquia, entre outros países. Segundo Paskaljevic, o filme também deveria ter recebido, por lei, apoio do governo iugoslavo, o que não aconteceu. "Disseram que não havia dinheiro, mas ajudaram outras produções. Então, só pode ter sido por motivos políticos."
Com voz tristonha, o diretor diz que está chocado com os bombardeios da Otan. Seus dois filhos -um de 25 anos, cineasta como ele, e outro de 7- e sua mãe ainda vivem em Belgrado. "Quero tirá-los de lá, mas como? Meus filhos são fruto de outros dois casamentos, não querem sair da cidade."
Antes dos bombardeios, Paskaljevic dividia seu tempo entre a França, onde mora com a mulher atual, e a Iugoslávia, que não troca por nada. Mas frisa que, hoje, viver em seu país natal não faz sentido. "Quando se está sob bombas, a única coisa que dá para pensar é em sobreviver."
Para ele, tanto Milosevic quanto Clinton apenas querem "promover suas carreiras" -e acrescenta: "É uma pena que políticos não frequentem cinemas...".
O início e o fim de "Barril de Pólvora" se passam em uma boate, numa alusão a "Cabaret" (72), de Bob Fosse. "Esse filme mostra um pré-fascismo e fecho a cena final com uma homenagem a ele. Isso me lembra que podemos entrar numa era pior, num neofascismo. Precisamos acordar. E logo."


Texto Anterior: Mundo Gourmet - Josimar Melo: Kinoshita é no capricho
Próximo Texto: Sociedade autoritária
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.