São Paulo, Sexta-feira, 28 de Maio de 1999
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CRÍTICA
Filme de Paskaljevic contém a violência que justifica guerra

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Para o espectador brasileiro, a surpresa que "Barril de Pólvora" reserva é, justamente, a ausência de surpresa, de estranhamento.
Embora nos fale da Iugoslávia em guerra -uma guerra de difícil entendimento- e de um povo que conhecemos por meia dúzia de filmes e dois ou três livros, o filme de Goran Paskaljevic raramente transmite uma sensação de distância. Na verdade, há pouca diferença entre "Barril de Pólvora" e uma parte considerável do cinema americano que se produz hoje em dia.
O filme compõe-se de uma série de vinhetas que pretendem mostrar o que se passa numa noite em Belgrado. Evidentemente, é uma situação de completa degenerescência. Logo na primeira história, um homem, cujo Volkswagen foi ligeiramente abalroado por outro carro, dirigido por um garoto sem habilitação, vai à casa do rapaz e arrebenta tudo que existe à sua frente.
Ele nem parece se preocupar muito com a hipótese de reparação dos danos ao seu carro. Eles lhe parecem irreparáveis.
Haverá depois o sujeito que mata seu melhor amigo; o que sequestra um ônibus e sai guiando pela cidade; o noivo ciumento que pretende culpar a namorada por ela quase ter sido vítima de estupro etc.
Não importa qual seja o assunto, em todos os episódios existe uma violência paroxística.
Todos servem, no mais, a constatar que esses personagens nervosos, reduzidos à violência mais primitiva, habitam um país onde a vida não faz sentido.
Depois da Primeira Guerra Mundial, os expressionistas alemães -às voltas com um país igualmente dilacerado- trabalhavam em um registro semelhante. Apenas que eles, no centro do mundo, pretendiam que a existência em geral não fazia sentido. Os que procuravam escapar a essa sensação de insânia tornavam-se, não raro, supercriminosos, tipo Dr. Mabuse -isto é, instauravam uma loucura ainda maior.
Em "Barril de Pólvora" não existe gênio do mal. O mal carece de genialidade porque está disseminado, indiscriminado. Assim como a guerra, o mal está em cada um.
Trata-se, em suma, de um filme de guerra sem guerra. No gênero, é bem mais interessante do que o decantado "Antes da Chuva", por exemplo, embora sofra com a irregularidade das situações (algumas soluções são desnecessária e literalmente bombásticas) e com a necessidade de explicar -por meio de um artista de cabaré- coisas que se auto-explicam.
Curiosamente, não é tanto a guerra que chama a atenção em "Barril de Pólvora", mas o caráter violento das sociedades balcânicas. Ao mesmo tempo -e se o espectador fizer a ligação com os filmes americanos de aventura- o filme fornece uma pista para entender a guerra nos Bálcãs, nutrida por ódios milenares que ninguém sabe precisar onde começam.
Pois a eles vêm se juntar os norte-americanos, que com seus bombardeios aéreos acrescentam à truculência existente uma outra truculência, essa que vemos com frequência ser exaltada, banalizada, tornada cotidiana nos "Duro de Matar", "Máquina Mortífera" e similares.
A rigor, "Barril de Pólvora" vem nos lembrar que convivemos com a violência pacificamente, isto é, que a aceitamos em nós e ao nosso redor, e que esta é uma característica do final do milênio.
A guerra nos Bálcãs seria, assim, segundo Paskaljevic, de uma outra natureza que as anteriores: menos gerada por interesses políticos, econômicos ou mesmo étnicos e muito mais por uma cultura que venera a agressividade e a necessidade de extravasá-la. Pode até não ser verdadeiro -veremos-, mas é um ponto de vista original.


Avaliação:


Filme: Barril de Pólvora Produção: França, 1998
Direção: Goran Paskaljevic
Com: Lazar Ristovski, Miki Manojlovic, Mirjana Jokovic
Quando: a partir de hoje, no Espaço Unibanco 2



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