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CARLOS HEITOR CONY
Como nasceu a extração noturna do jogo do bicho
Eram judeus russos, acho
que de Kiev, e aqui chegaram
logo após a Revolução de 1917.
Um grego como Ulisses, quando
parte, parte sozinho. Um judeu
quando parte leva todo um povo
atrás, como Moisés.
Daí que vieram todos, o casal
com os 12 filhos, alguns cunhados,
um ancião que eles mesmos não
sabiam se era da família, mas que
não podiam abandonar naqueles
tempos incertos do bolchevismo,
e, coroando tudo, um guri de meses que também não se sabia se
era da família, pois nascera misteriosamente, ou seja, nem nascera, aparecera na porta da casa deles, suspeitava-se que era rebento
de uma das filhas mais velhas que
escondera a gravidez sabe-se lá
como.
Foi adotado inicialmente como
um enjeitado que o destino colocara na porta deles, mais tarde
como filho de uma delas, finalmente, para acabar com as desavenças, como filho do tal ancião,
que ficou com a culpa sem ter tido
nenhum proveito.
Ao todo, 17 pessoas. Tomaram
um barco em Odessa, foram para
Nápoles, de lá iriam para Nova
York, mas houve uma embrulhada com os vistos, acabaram vindo
para o Rio, acrescidos de um rapaz que engravidou uma das moças durante a travessia no ""Re
d'Italia", um navio que levava 28
dias para chegar a Recife e mais
dez dias para chegar à praça
Mauá.
Não sabiam uma palavra em
português, falavam russo e iídiche, a temporada em Nápoles foi
suficiente para aprenderem algumas palavras que eles chegavam
a pensar que eram italianas, mas
eram vagamente latinas.
Ajudados por judeus russos que
aqui chegaram antes e de alguma
forma já se viravam no mercado
de móveis e jóias a prestação, foram morar em Aldeia Campista,
onde já viviam os Rodrigues, um
deles chamado Nelson, que fez
daqueles emigrantes um universo
de personagens bizarros que lhe
deram renome e fama de tarado.
Enfrentaram dificuldades, não
tinham um ofício específico e todos se viravam como podiam,
sendo que um dos rapazes, o mais
velho, já com 18 anos, vendia laranjas numa feira livre da praça
Barão de Drummond, aprendeu
a jogar no bicho e a pronunciar
algumas palavras que aos demais
pareciam da língua local, embora
não fossem coisa alguma. Ele
pensava em russo, traduzia mentalmente para o iídiche e, saísse o
que saísse, era de certa forma entendido. Tornou-se o líder do clã.
Chamava-se Abracha, mas
adotou o nome de Isaac, que era
mais fácil de pronunciar e mantinha laços onomásticos com a linhagem dos patriarcas do Livro.
Uma noite, estavam todos dormindo na pequenina casa de
duas salas e dois quartos da rua
Maxwell, quando uma das irmãs
começou a gritar, com fortes dores na barriga. Era uma crise de
apendicite.
Como elemento único que sabia
algumas palavras em português,
Isaac foi encarregado de tomar
providências. Sabiam que a Santa Casa de Misericórdia funcionava para emergências, um outro
judeu russo fora atropelado no
Boulevard 28 de Setembro e atendido com razoável presteza na
piedosa instituição que ainda hoje existe e onde trabalha uma vez
por semana o Ivo Pitanguy.
Fizeram uma rápida vaquinha
e deram o dinheiro a Isaac, que
alugou um táxi e levou a irmã em
dores para ser atendida. O plantonista que os recebeu pediu as
informações necessárias para a
emergência e, como era um pouco
surdo e como Isaac falava atrapalhado, ficou em dúvida e chamou
uma freirinha que passava pelo
corredor, levando uma comadre
para um doente que tinha sido
operado da bexiga.
Com a comadre na mão, a freirinha perguntou o que estava havendo. Isaac ficou aturdido, nunca tinha visto uma freira levando
aquele equipamento hospitalar
para os necessitados que não podiam urinar em pé. Por sua vez, a
irmã que morria de dor passou a
gritar mais alto, imaginando o
que iriam fazer com ela.
Isaac explicou o que pôde, a
freira chamou um médico, todos
conferenciaram, Isaac fez questão
de deixar bem claro que não tinha recursos para pagar o que
fosse, para isso fazia um gesto na
própria garganta, querendo dizer
que a família vivia num sufoco
geral.
Finalmente, o médico entendeu
e encaminhou a doente à sala de
cirurgia mais próxima -e ali extraiu as amígdalas da irmã de
Isaac. A seco, sem anestesia. A dor
foi tanta e tamanha que a irmã
de Isaac parou de sentir o apêndice inflamado, parou de sentir
qualquer dor. Após a extração
das amígdalas de forma tão brutal e inesperada, tudo era lucro
para ela, a dor no apêndice tornara-se irrelevante.
A partir daquela noite, Isaac,
que já era considerado um gênio,
um salvador do povo, passou a ser
usado em missões cada vez mais
delicadas. Continuou vendendo
laranjas e descobriu um jeito de
ganhar sempre no bicho: tornou-se amigo dos bicheiros, que, naquele tempo, só faziam uma extração pela tarde.
Aprendendo a palavra ""extração", ele sugeriu que fosse feita
uma extração à noite e, em homenagem à irmã que tivera as amígdalas indevidamente extraídas, deu ao sorteio noturno o nome de
""Constantino" -nome do médico que o atendera naquela emergência.
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