São Paulo, sexta-feira, 28 de junho de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

Como nasceu a extração noturna do jogo do bicho

Eram judeus russos, acho que de Kiev, e aqui chegaram logo após a Revolução de 1917. Um grego como Ulisses, quando parte, parte sozinho. Um judeu quando parte leva todo um povo atrás, como Moisés.
Daí que vieram todos, o casal com os 12 filhos, alguns cunhados, um ancião que eles mesmos não sabiam se era da família, mas que não podiam abandonar naqueles tempos incertos do bolchevismo, e, coroando tudo, um guri de meses que também não se sabia se era da família, pois nascera misteriosamente, ou seja, nem nascera, aparecera na porta da casa deles, suspeitava-se que era rebento de uma das filhas mais velhas que escondera a gravidez sabe-se lá como.
Foi adotado inicialmente como um enjeitado que o destino colocara na porta deles, mais tarde como filho de uma delas, finalmente, para acabar com as desavenças, como filho do tal ancião, que ficou com a culpa sem ter tido nenhum proveito.
Ao todo, 17 pessoas. Tomaram um barco em Odessa, foram para Nápoles, de lá iriam para Nova York, mas houve uma embrulhada com os vistos, acabaram vindo para o Rio, acrescidos de um rapaz que engravidou uma das moças durante a travessia no ""Re d'Italia", um navio que levava 28 dias para chegar a Recife e mais dez dias para chegar à praça Mauá.
Não sabiam uma palavra em português, falavam russo e iídiche, a temporada em Nápoles foi suficiente para aprenderem algumas palavras que eles chegavam a pensar que eram italianas, mas eram vagamente latinas.
Ajudados por judeus russos que aqui chegaram antes e de alguma forma já se viravam no mercado de móveis e jóias a prestação, foram morar em Aldeia Campista, onde já viviam os Rodrigues, um deles chamado Nelson, que fez daqueles emigrantes um universo de personagens bizarros que lhe deram renome e fama de tarado.
Enfrentaram dificuldades, não tinham um ofício específico e todos se viravam como podiam, sendo que um dos rapazes, o mais velho, já com 18 anos, vendia laranjas numa feira livre da praça Barão de Drummond, aprendeu a jogar no bicho e a pronunciar algumas palavras que aos demais pareciam da língua local, embora não fossem coisa alguma. Ele pensava em russo, traduzia mentalmente para o iídiche e, saísse o que saísse, era de certa forma entendido. Tornou-se o líder do clã.
Chamava-se Abracha, mas adotou o nome de Isaac, que era mais fácil de pronunciar e mantinha laços onomásticos com a linhagem dos patriarcas do Livro.
Uma noite, estavam todos dormindo na pequenina casa de duas salas e dois quartos da rua Maxwell, quando uma das irmãs começou a gritar, com fortes dores na barriga. Era uma crise de apendicite.
Como elemento único que sabia algumas palavras em português, Isaac foi encarregado de tomar providências. Sabiam que a Santa Casa de Misericórdia funcionava para emergências, um outro judeu russo fora atropelado no Boulevard 28 de Setembro e atendido com razoável presteza na piedosa instituição que ainda hoje existe e onde trabalha uma vez por semana o Ivo Pitanguy.
Fizeram uma rápida vaquinha e deram o dinheiro a Isaac, que alugou um táxi e levou a irmã em dores para ser atendida. O plantonista que os recebeu pediu as informações necessárias para a emergência e, como era um pouco surdo e como Isaac falava atrapalhado, ficou em dúvida e chamou uma freirinha que passava pelo corredor, levando uma comadre para um doente que tinha sido operado da bexiga.
Com a comadre na mão, a freirinha perguntou o que estava havendo. Isaac ficou aturdido, nunca tinha visto uma freira levando aquele equipamento hospitalar para os necessitados que não podiam urinar em pé. Por sua vez, a irmã que morria de dor passou a gritar mais alto, imaginando o que iriam fazer com ela.
Isaac explicou o que pôde, a freira chamou um médico, todos conferenciaram, Isaac fez questão de deixar bem claro que não tinha recursos para pagar o que fosse, para isso fazia um gesto na própria garganta, querendo dizer que a família vivia num sufoco geral.
Finalmente, o médico entendeu e encaminhou a doente à sala de cirurgia mais próxima -e ali extraiu as amígdalas da irmã de Isaac. A seco, sem anestesia. A dor foi tanta e tamanha que a irmã de Isaac parou de sentir o apêndice inflamado, parou de sentir qualquer dor. Após a extração das amígdalas de forma tão brutal e inesperada, tudo era lucro para ela, a dor no apêndice tornara-se irrelevante.
A partir daquela noite, Isaac, que já era considerado um gênio, um salvador do povo, passou a ser usado em missões cada vez mais delicadas. Continuou vendendo laranjas e descobriu um jeito de ganhar sempre no bicho: tornou-se amigo dos bicheiros, que, naquele tempo, só faziam uma extração pela tarde.
Aprendendo a palavra ""extração", ele sugeriu que fosse feita uma extração à noite e, em homenagem à irmã que tivera as amígdalas indevidamente extraídas, deu ao sorteio noturno o nome de ""Constantino" -nome do médico que o atendera naquela emergência.



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