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São Paulo, sábado, 28 de junho de 2003

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"VIDA E ÉPOCA DE MICHAEL K"

Obra rendeu ao autor o Booker Prize, em 83

Coetzee explora amplitude de temas históricos e existenciais

MARCELO PEN
CRÍTICO DE FOLHA

Com esta narrativa sobre Michael K, "o mais obscuro dos obscuros, tão obscuro que chega a ser um prodígio", J.M. Coetzee arrebatou em 1983 seu primeiro Booker Prize, galardão máximo da literatura inglesa. Merecia mais. O escritor de origem sul-africana já esteve perto de ganhar o Nobel. Talvez nunca ganhe após outro representante das colônias, o trinitário V.S. Naipaul, ter levado o prêmio em 2001.
Mas nem só de louros vive o homem; e a ficção de Coetzee (que se recusa a ser entrevistado) figura entre as melhores atualmente. Não é fácil apreender a dimensão de "Vida e Época de Michael K", que, ao lado das produções mais recentes do autor, escapa do literário para implicar questões históricas e existenciais mais amplas.
De fato, se tomarmos o nível estilístico-narrativo, a prosa de Coetzee é clara, sem percalços, e o enredo é simples, sem mistérios. Em meio à guerra civil sul-africana, o jardineiro Michael tenta arrastar sua mãe da Cidade do Cabo ao município rural de Prince Albert, perto de onde ela nascera. Mas a mãe, que sofre de hidropisia e é obrigada a ser transportada num carrinho de mão improvisado, morre no início do trajeto.
Michael realiza, então, o resto da viagem sozinho, levando consigo as cinzas da velha. Chega a uma fazenda abandonada que pode ter sido o berço da mãe. É preso algumas vezes. Enviado a campos de reassentamento, que de fato são campos de trabalho forçado, escapa quando pode. Aproveitando sua aptidão para a jardinagem, procura cultivar algumas plantas, que medram sob a constante ameaça dos homens.
A dificuldade começa a crescer quando procuramos saber quem é Michael K, o que ele representa dentro da guerra (e o que a guerra representa para a comunidade de homens representada por Michael). Deduzimos que é negro mais pelo contexto social e histórico em que vive, pois as alusões à sua origem étnica são escassas. Um soldado o xinga de "macaco"; numa ficha policial sua pele é descrita como "escura". É só.
Mais evidente, pois está estampada no parágrafo inicial, é sua deformidade congênita -ele tem lábio leporino. O defeito poderia ser corrigido, mas o rapaz responde ao médico que propõe a operação: "Sou o que sou". A verdade é que, no transcurso de sua aventura, Michael será muitas coisas.
Vivendo de insetos e lagartos nas montanhas, sente que se torna "outro tipo de homem [...] menor, mais duro e mais seco". Pensa em si "como uma formiga que não sabe onde está seu formigueiro", como "um grão de poeira", "como um parasita cochilando no intestino". Quando é recolhido a um hospital, o médico que trata dele pensa inicialmente que se trata de um "velhinho", embora Michael tivesse apenas 32 anos.
A aproximação mais óbvia a ser feita acerca das inúmeras transformações sofridas pelo personagem é com Kafka. Como Joseph K, de "O Processo", Michael é vítima de um pesadelo (deflagrado pela guerra), cujo significado lhe escapa. Como Gregório Samsa, após seu "sono intranquilo", sucede-lhe uma metamorfose, ou, melhor dizendo, metamorfoses.
A diferença é que o percurso de Michael aponta para uma possível redenção. Num determinado ponto ele é um homem envelhecido e subnutrido, que se nega a comer. O médico que trata dele procura decifrar o segredo: ele seria como uma pedra passando "através do intestino da guerra". Enquanto as rodas da história, às quais a guerra cinge seus tentáculos, continuam girando, Michael vive num outro tempo, fora do alcance do calendário, um tempo que corre "devagar como óleo".
Michael oferece sua própria existência como resposta ao absurdo da guerra. Ao tempo do relógio, opõe o não-tempo do esquecimento e da plenitude. Em meio a bombas e ao ódio racial, espalha sementes de abóbora. No labirinto da vida, aponta o caminho. Numa época de homens ocos, Michael K é um significado e um enigma.

Vida e Época de Michael K


    
Autor: J.M. Coetzee
Tradução: José Rubens Siqueira
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 31 (214 págs.)



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