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"VIDA E ÉPOCA DE MICHAEL K"
Obra rendeu ao autor o Booker Prize, em 83
Coetzee explora amplitude de temas históricos e existenciais
MARCELO PEN
CRÍTICO DE FOLHA
Com esta narrativa sobre Michael K, "o mais obscuro dos
obscuros, tão obscuro que chega a
ser um prodígio", J.M. Coetzee arrebatou em 1983 seu primeiro
Booker Prize, galardão máximo
da literatura inglesa. Merecia
mais. O escritor de origem sul-africana já esteve perto de ganhar
o Nobel. Talvez nunca ganhe após
outro representante das colônias,
o trinitário V.S. Naipaul, ter levado o prêmio em 2001.
Mas nem só de louros vive o homem; e a ficção de Coetzee (que se
recusa a ser entrevistado) figura
entre as melhores atualmente.
Não é fácil apreender a dimensão
de "Vida e Época de Michael K",
que, ao lado das produções mais
recentes do autor, escapa do literário para implicar questões históricas e existenciais mais amplas.
De fato, se tomarmos o nível estilístico-narrativo, a prosa de
Coetzee é clara, sem percalços, e o
enredo é simples, sem mistérios.
Em meio à guerra civil sul-africana, o jardineiro Michael tenta arrastar sua mãe da Cidade do Cabo
ao município rural de Prince Albert, perto de onde ela nascera.
Mas a mãe, que sofre de hidropisia e é obrigada a ser transportada
num carrinho de mão improvisado, morre no início do trajeto.
Michael realiza, então, o resto
da viagem sozinho, levando consigo as cinzas da velha. Chega a
uma fazenda abandonada que
pode ter sido o berço da mãe. É
preso algumas vezes. Enviado a
campos de reassentamento, que
de fato são campos de trabalho
forçado, escapa quando pode.
Aproveitando sua aptidão para a
jardinagem, procura cultivar algumas plantas, que medram sob a
constante ameaça dos homens.
A dificuldade começa a crescer
quando procuramos saber quem
é Michael K, o que ele representa
dentro da guerra (e o que a guerra
representa para a comunidade de
homens representada por Michael). Deduzimos que é negro
mais pelo contexto social e histórico em que vive, pois as alusões à
sua origem étnica são escassas.
Um soldado o xinga de "macaco";
numa ficha policial sua pele é descrita como "escura". É só.
Mais evidente, pois está estampada no parágrafo inicial, é sua
deformidade congênita -ele tem
lábio leporino. O defeito poderia
ser corrigido, mas o rapaz responde ao médico que propõe a operação: "Sou o que sou". A verdade é
que, no transcurso de sua aventura, Michael será muitas coisas.
Vivendo de insetos e lagartos
nas montanhas, sente que se torna "outro tipo de homem [...] menor, mais duro e mais seco". Pensa em si "como uma formiga que
não sabe onde está seu formigueiro", como "um grão de poeira",
"como um parasita cochilando no
intestino". Quando é recolhido a
um hospital, o médico que trata
dele pensa inicialmente que se
trata de um "velhinho", embora
Michael tivesse apenas 32 anos.
A aproximação mais óbvia a ser
feita acerca das inúmeras transformações sofridas pelo personagem é com Kafka. Como Joseph
K, de "O Processo", Michael é vítima de um pesadelo (deflagrado
pela guerra), cujo significado lhe
escapa. Como Gregório Samsa,
após seu "sono intranquilo", sucede-lhe uma metamorfose, ou,
melhor dizendo, metamorfoses.
A diferença é que o percurso de
Michael aponta para uma possível redenção. Num determinado
ponto ele é um homem envelhecido e subnutrido, que se nega a comer. O médico que trata dele procura decifrar o segredo: ele seria
como uma pedra passando "através do intestino da guerra". Enquanto as rodas da história, às
quais a guerra cinge seus tentáculos, continuam girando, Michael
vive num outro tempo, fora do alcance do calendário, um tempo
que corre "devagar como óleo".
Michael oferece sua própria
existência como resposta ao absurdo da guerra. Ao tempo do relógio, opõe o não-tempo do esquecimento e da plenitude. Em
meio a bombas e ao ódio racial,
espalha sementes de abóbora. No
labirinto da vida, aponta o caminho. Numa época de homens
ocos, Michael K é um significado
e um enigma.
Vida e Época de Michael K
Autor: J.M. Coetzee
Tradução: José Rubens Siqueira
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 31 (214 págs.)
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