São Paulo, quinta-feira, 28 de junho de 2007

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crítica

Ótimo filme atualiza mito da torre de Babel

COLUNISTA DA FOLHA

S obre as imagens justapostas da paisagem do Pantanal e dos corredores de um museu europeu, "500 Almas" começa com frases murmuradas em alemão, em português, em língua guató, numa algaravia que remete ao mito da torre de Babel, mencionado em off pela voz de Paulo José cerca de uma hora depois.
O tema da proliferação das línguas e culturas, e da sua contaminação umas pelas outras, é o fundo sobre o qual se projeta a figura do guató, esse homem do coração do Pantanal, canoeiro, meio nômade, que os especialistas julgavam desaparecido. Palavras do idioma guató, ditas ou cantadas, pontuam a trilha sonora como um refrão, um mantra secreto. São tão importantes quanto as histórias contadas em português por índios aculturados e missionários, ou em francês e alemão por antropólogos.
Esse é um dos segredos da composição de "500 Almas": tudo ali tem a mesma espessura, das cenas do cotidiano guató (um pescador raspando as escamas de um peixe com uma pedra, crianças brincando no rio) às paisagens pantaneiras filmadas do alto por uma câmera voadora que subverte as referências espaciais. Mas cada imagem tem luz e relevo próprios, com seu tanto de informação e seu tanto de opacidade.
Como na melhor poesia, um grau de estranheza sempre permanece. Dar ritmo e coesão a esse conjunto heterogêneo não deve ter sido tarefa fácil.

Contaminações
Em "500 Almas" estamos longe de uma visão idealizada e paternalista do índio. Sua cultura não é "pura", nem tampouco seu comportamento. Há contaminações de todo tipo. Nas histórias e lendas contadas pelos velhos já é impossível deslindar o que é original da mitologia guató e o que veio de influência cabocla.
O cacique guató pratica um culto evangélico, um curandeiro mistura rituais indígenas com rezas e santos católicos, muitos guatós preferem viver na periferia de Corumbá a se integrar à aldeia na ilha Insua. Alcoolismo, confusão, miséria, abandono -tudo aparece no filme sem ênfase e sem discurso, a par da beleza dos indivíduos, da paisagem e das ações.
A circunstância mais curiosa da história recente dos guatós é que sua reconstituição enquanto povo foi em grande parte obra de brancos, ou antes de brancas: uma antropóloga, uma lingüista, uma missionária. Alguns dos momentos mais comoventes são aqueles em que a lingüista pernambucana Adair Pimentel Palácio conversa com velhas índias procurando resgatar na memória delas palavras perdidas da língua guató.
A certa altura, uma dessas índias lhe diz: "Eu tô muito esquecida". Aidar, abraçando-a entre risos, responde: "Eu também tô esquecida". Duas mulheres de culturas tão diferentes tentando juntas não deixar uma língua morrer. É uma cena singela e extraordinária de um filme grandioso. (JGC)


500 ALMAS
Direção:
Joel Pizzini
Produção: Brasil, 2004
Onde: em cartaz a partir de amanhã no Espaço Unibanco 3
Avaliação: ótimo



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