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crítica
Ótimo filme atualiza mito da torre de Babel
COLUNISTA DA FOLHA
S
obre as imagens
justapostas da paisagem do Pantanal
e dos corredores de um
museu europeu, "500 Almas" começa com frases
murmuradas em alemão,
em português, em língua
guató, numa algaravia que
remete ao mito da torre de
Babel, mencionado em off
pela voz de Paulo José cerca de uma hora depois.
O tema da proliferação
das línguas e culturas, e da
sua contaminação umas
pelas outras, é o fundo sobre o qual se projeta a figura do guató, esse homem
do coração do Pantanal,
canoeiro, meio nômade,
que os especialistas julgavam desaparecido.
Palavras do idioma guató, ditas ou cantadas, pontuam a trilha sonora como
um refrão, um mantra secreto. São tão importantes
quanto as histórias contadas em português por índios aculturados e missionários, ou em francês e
alemão por antropólogos.
Esse é um dos segredos
da composição de "500 Almas": tudo ali tem a mesma espessura, das cenas
do cotidiano guató (um
pescador raspando as escamas de um peixe com
uma pedra, crianças brincando no rio) às paisagens
pantaneiras filmadas do
alto por uma câmera voadora que subverte as referências espaciais.
Mas cada imagem tem
luz e relevo próprios, com
seu tanto de informação e
seu tanto de opacidade.
Como na melhor poesia,
um grau de estranheza
sempre permanece. Dar
ritmo e coesão a esse conjunto heterogêneo não deve ter sido tarefa fácil.
Contaminações
Em "500 Almas" estamos longe de uma visão
idealizada e paternalista
do índio. Sua cultura não é
"pura", nem tampouco seu
comportamento. Há contaminações de todo tipo.
Nas histórias e lendas
contadas pelos velhos já é
impossível deslindar o que
é original da mitologia
guató e o que veio de influência cabocla.
O cacique guató pratica
um culto evangélico, um
curandeiro mistura rituais
indígenas com rezas e santos católicos, muitos guatós preferem viver na periferia de Corumbá a se integrar à aldeia na ilha Insua.
Alcoolismo, confusão, miséria, abandono -tudo
aparece no filme sem ênfase e sem discurso, a par da
beleza dos indivíduos, da
paisagem e das ações.
A circunstância mais curiosa da história recente
dos guatós é que sua reconstituição enquanto povo foi em grande parte
obra de brancos, ou antes
de brancas: uma antropóloga, uma lingüista, uma
missionária.
Alguns dos momentos
mais comoventes são
aqueles em que a lingüista
pernambucana Adair Pimentel Palácio conversa
com velhas índias procurando resgatar na memória delas palavras perdidas
da língua guató.
A certa altura, uma dessas índias lhe diz: "Eu tô
muito esquecida". Aidar,
abraçando-a entre risos,
responde: "Eu também tô
esquecida". Duas mulheres de culturas tão diferentes tentando juntas
não deixar uma língua
morrer. É uma cena singela e extraordinária de um
filme grandioso.
(JGC)
500 ALMAS
Direção: Joel Pizzini
Produção: Brasil, 2004
Onde: em cartaz a partir de
amanhã no Espaço Unibanco 3
Avaliação: ótimo
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