São Paulo, sábado, 28 de julho de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RESENHA DA SEMANA

Cultura da infelicidade

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Um dos princípios básicos dos livros de auto-ajuda é mostrar ao indivíduo, por meio de lugares-comuns, que a vida é igual para todo mundo, e com isso aliviá-lo de uma dor que ele achava ser só sua.
"O consolo mais eficaz consiste, em primeiro lugar, em verificar que outros padecem de sofrimentos muito maiores; em segundo, em buscar a companhia dos (...) que se encontram em situação igual à nossa", escreveu o filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) em uma das 50 máximas reunidas, 140 anos depois da sua morte, sob o título um tanto irônico de "A Arte de Ser Feliz".
Irônico, nesse caso, pelo simples fato de Schopenhauer ser um filósofo pessimista. E nada mais incongruente do que imaginá-lo escrevendo um manual de felicidade. O pequeno volume, cuja edição parece seguir o espírito dos livros de cabeceira que servem de pílulas de sabedoria ao alcance das mãos, apenas acrescenta a antigos preceitos estóicos e aristotélicos ("O homem sábio não persegue o que é agradável, mas a ausência de dor") a crença absoluta nos efeitos do autoconhecimento.
Pressupondo que "a felicidade completa e positiva é impossível", o filósofo pessimista (que aqui não é mais do que sinônimo de homem de bom senso) não deixa ao leitor outra escolha além de "esperar apenas um estado relativamente menos doloroso" da vida. Sua "Arte de Ser Feliz" é, no fundo, um manual da menor infelicidade.
A conclusão é empírica: não existe felicidade em si, mas apenas na comparação com a sua falta. E daí a impossibilidade de atingi-la e a ilusão e infelicidade dos que a procuram. Você almeja uma coisa ou um estado de coisas, e das duas uma: ou não o alcança ou quando o alcança já não pode desfrutá-lo, pois já não o percebe como aquilo que almejava.
"Num caso feliz, aquilo que comprime nossas aspirações é aliviado, e elas se expandem: nisso está a alegria. No entanto, ela também dura apenas até o momento em que tal operação se realiza totalmente: nós nos habituamos à ampliação dos nossos desejos e nos tornamos indiferentes à posse correspondente. (...) Passamos incansavelmente de desejo em desejo."
Ou seja: a felicidade só pode ser concebida pela sua ausência ou pela sua perda, ao contrário da dor, que se manifesta por si só. "Todos viemos ao mundo cheios de pretensões de felicidade e prazer (...) até o momento em que o destino nos aferra bruscamente e nos mostra que nada é nosso (...). A experiência vem em seguida e nos ensina que a felicidade e o prazer não passam de uma quimera, mostrada à distância por uma ilusão, enquanto o sofrimento e a dor são reais e manifestam-se diretamente (...), sem a necessidade da ilusão e da espera."
A solução, portanto, é muito mais subjetiva do que objetiva. "O meio mais seguro de não se tornar muito infeliz consiste em não desejar ser muito feliz." Um comedimento das expectativas em que o autoconhecimento tem um papel fundamental. "A fonte da nossa insatisfação reside nas nossas tentativas, continuamente renovadas, de aumentar o limite constituído pelas pretensões, enquanto o outro fator, que o impede, permanece imutável."
Para escapar a essa infelicidade, Schopenhauer propõe a cada um adequar-se a si mesmo, adequar o que quer ao que pode, resignar-se aos seus próprios limites: "Uma vez que estamos perfeitamente conscientes das nossas forças e fraquezas, não tentaremos nem mesmo demonstrar forças que não possuímos, não jogaremos com falsa moeda (...). Todo homem é apenas a manifestação da própria vontade, nada pode ser mais insensato do que querer propositadamente ser algo diferente do que se é".
É o contrário do que prescreve uma cultura baseada na exposição, na autopromoção e no marketing. Uma cultura em que a visibilidade de um autor, por exemplo, é suficiente para tornar invisíveis as mediocridades de sua autoria. Uma sociedade em que a impostura pública e o auto-engano recíproco substituem o autoconhecimento. "Quem se tornou sábio sabe que a felicidade de um indivíduo depende inteiramente daquilo que ele mesmo é para si mesmo, enquanto não depende em nada do que é na opinião alheia." Uma cultura que cultiva a infelicidade, fingindo que é feliz.


A Arte de Ser Feliz
Die Kunst Glücklich Zu Sein
    
Autor: Arthur Schopenhauer
Tradução: Marion Fleischer e Eduardo Brandão
Editora: Martins Fontes
Quanto: R$ 12,50 (138 págs.)




Texto Anterior: "Cisne de Feltro" e "Alhos & Bugalhos": Mendes Campos redescobre o tempo
Próximo Texto: Panorâmica - Relançamento: Trevisan autografa "Devassos"
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.