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ANÁLISE
Imagens são esforço de recompor vítimas
ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA
A celeuma em torno das
imagens dos corpos mutilados dos filhos de Saddam Hussein
ilustra as dificuldades que as forças anglo-americanas estão encontrando para se estabelecer no
Iraque. A desconfiança dos iraquianos aliada à crescente sensibilidade mundial frente à imagens
de violência prejudicam os esforços dos invasores.
Ávidos por alardear alguma
prova de vitória, que ajude a estancar os atentados que prolongam a instabilidade na região e
prejudicam a repercussão das negociações de paz entre Israel e palestinos, os americanos buscam literalmente as cabeças dos inimigos. Três meses depois do cessar-fogo oficial, é anunciada a morte
de dois filhos e um neto adolescente do ex-ditador do Iraque.
Imagens da criança sintomaticamente não apareceram.
Iraquianos versados nas artes
do disfarce duvidaram de que as
fotos daqueles rostos horripilantes e machucados, sem corpo e
sem contexto, fossem realmente
dos filhos do ex-ditador.
Apareceram radiografias de arcadas dentárias e ossadas. O discurso científico não foi suficiente.
Repórteres e cinegrafistas registraram imagens de corpos inteiros na câmera mortuária improvisada pela força aérea dos EUA
no aeroporto de Bagdá.
Quem já assistiu ao seriado "A
Sete Palmos" sabe que a intervenção plástica em cadáveres é parte
do ritual mortuário praticado nos
Estados Unidos. Lá a conduta
pretende imortalizar a melhor
imagem do morto, uma que se
pareça com sua expressão viva,
natural. Mas não é comum no
mundo árabe (nem no Brasil, diga-se de passagem).
Nesse caso a intervenção cirúrgica nos cadáveres pretendeu reduzir o impacto negativo que os
corpos destroçados teria sobre a
opinião pública internacional,
que já tem em baixa conta a imagem dos EUA, desgastada pela
ausência de provas da existência
das armas de destruição em massa que justificaram a invasão.
O resultado é talvez mais brutal.
Rostos semi-reconstituídos, limpos e barbeados contrastam com
aqueles apresentados inicialmente nas fotos e com as feridas nas
outras partes visíveis, braços e
pernas.
Emissoras norte-americanas
advertem previamente sobre a
impropriedade das imagens. Outras emissoras hesitam em divulgar os vídeos.
A exibição pública de corpos de
inimigos mortos, muitas vezes esquartejados, celebra a vitória em
diversas culturas desde tempos
imemoriais. Espetáculos de violência, as vezes canibais, consagram poderes dominantes entre
os índios brasileiros, os gregos, os
portugueses.
Nesse caso o esforço foi o de recompor a carne violentada. Disseminadas como nunca, imagens de
corpos dilacerados não perderam
a capacidade de horrorizar. Talvez haja aí uma esperança.
Esther Hamburger é antropóloga e
professora da ECA-USP
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