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São Paulo, segunda-feira, 28 de julho de 2003

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ANÁLISE

Imagens são esforço de recompor vítimas

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

A celeuma em torno das imagens dos corpos mutilados dos filhos de Saddam Hussein ilustra as dificuldades que as forças anglo-americanas estão encontrando para se estabelecer no Iraque. A desconfiança dos iraquianos aliada à crescente sensibilidade mundial frente à imagens de violência prejudicam os esforços dos invasores.
Ávidos por alardear alguma prova de vitória, que ajude a estancar os atentados que prolongam a instabilidade na região e prejudicam a repercussão das negociações de paz entre Israel e palestinos, os americanos buscam literalmente as cabeças dos inimigos. Três meses depois do cessar-fogo oficial, é anunciada a morte de dois filhos e um neto adolescente do ex-ditador do Iraque. Imagens da criança sintomaticamente não apareceram.
Iraquianos versados nas artes do disfarce duvidaram de que as fotos daqueles rostos horripilantes e machucados, sem corpo e sem contexto, fossem realmente dos filhos do ex-ditador.
Apareceram radiografias de arcadas dentárias e ossadas. O discurso científico não foi suficiente. Repórteres e cinegrafistas registraram imagens de corpos inteiros na câmera mortuária improvisada pela força aérea dos EUA no aeroporto de Bagdá.
Quem já assistiu ao seriado "A Sete Palmos" sabe que a intervenção plástica em cadáveres é parte do ritual mortuário praticado nos Estados Unidos. Lá a conduta pretende imortalizar a melhor imagem do morto, uma que se pareça com sua expressão viva, natural. Mas não é comum no mundo árabe (nem no Brasil, diga-se de passagem).
Nesse caso a intervenção cirúrgica nos cadáveres pretendeu reduzir o impacto negativo que os corpos destroçados teria sobre a opinião pública internacional, que já tem em baixa conta a imagem dos EUA, desgastada pela ausência de provas da existência das armas de destruição em massa que justificaram a invasão.
O resultado é talvez mais brutal. Rostos semi-reconstituídos, limpos e barbeados contrastam com aqueles apresentados inicialmente nas fotos e com as feridas nas outras partes visíveis, braços e pernas.
Emissoras norte-americanas advertem previamente sobre a impropriedade das imagens. Outras emissoras hesitam em divulgar os vídeos.
A exibição pública de corpos de inimigos mortos, muitas vezes esquartejados, celebra a vitória em diversas culturas desde tempos imemoriais. Espetáculos de violência, as vezes canibais, consagram poderes dominantes entre os índios brasileiros, os gregos, os portugueses.
Nesse caso o esforço foi o de recompor a carne violentada. Disseminadas como nunca, imagens de corpos dilacerados não perderam a capacidade de horrorizar. Talvez haja aí uma esperança.


Esther Hamburger é antropóloga e professora da ECA-USP


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