São Paulo, sexta-feira, 28 de julho de 2006

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Crítica/teatro

"Aberrações" desvenda a solidão e eleva ator à condição de boneco

SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Diante de sua biblioteca imensa, garantia de seu saber privilegiado, o intelectual posa solenemente para a posteridade. A imagem é tão emblemática para o século 20 quanto foi para o 19 a foto da família feita em estúdio -e, muito em breve, igualmente obsoleta.
Tanto maior é a nostalgia de "Les Aberrations du Documentaliste" ("Aberrações de um Bibliotecário"), espetáculo que a companhia do franco-argentino Ezéquiel Garcia-Romeu apresentou com uma excelente acolhida do público no Festival Internacional de São José do Rio Preto e que agora começa a temporada no Sesc Santana.
Inserido no restrito universo do teatro de bonecos para adultos, o diretor-manipulador eleva ainda mais a aposta ao limitar sua platéia. "La Méridienne", espetáculo da mesma companhia que teve já uma temporada relâmpago na cidade, era radical: um boneco minúsculo manipulado pelo diretor-cenógrafo expunha durante cinco minutos "a fragilidade do pensamento humano diante do tempo" para um único espectador, que em seguida era convidado a compartilhar suas impressões com o público que esperava ainda.
Nesta experiência, a solidão ainda é o tema, embora o público seja um pouco menos restrito (são 38 por sessão), e novamente uma discreta interatividade procure sensibilizá-lo para uma profundidade essencial.
Conduzido por um labirinto -a referência à Borges é imediata-, o público espia escondido os devaneios desse demiurgo do mundo das idéias, pela transparência das coxias, até poder sentar na platéia.
O bibliotecário é um ator. Mas será mesmo? A precisão de seus movimentos, o carisma de sua fisionomia eleva Jacques Fornier à condição de boneco, na utopia de Gordon Craig -e o espetáculo parece remeter diretamente ao revolucionário encenador inglês, que passou as últimas décadas de sua vida recluso elaborando espetáculos de animação. Um rápido arremesso de dados ameaça levar à erudição da biblioteca do simbolista Mallarmé -mas nada haverá de hermético no espetáculo. Pelo contrário: a grande referência do encenador é Fernando Pessoa, e logo tudo se banhará na sábia puerilidade de Alberto Caeiro, com o desassossego de Bernardo Soares.
O tema de Deus diante de sua criatura é de um fascínio incontornável para os manipuladores, e o espetáculo se filia pela sua poesia densa, quase ritual, ao grupo Contadores de Estórias de Paraty. Mas enquanto o grupo de Marcos Caetano Ribas surge como deuses protetores de suas frágeis e desamparadas criaturas, Fornier não é manipulador. Os bonecos que brotam de sua mesa, como alucinações, animados habilmente por baixo pelo diretor e pelo co-diretor e co-cenógrafo François Tomsu, parecem ter vida própria.
Uma vida efêmera e sem nexo, no entanto. Esses homúnsculos, como caricaturas derrisórias da humanidade, se autodestroem na disputa pelo mundo, sem que o criador possa fazer algo por eles. Uma alegoria tão clara sobre os atuais tempos de guerra, que qualquer tentativa de acrescentar sentidos leva inevitavelmente à diluição da força do espetáculo.
O sono da razão produz monstros, e não há nada que um documentalista possa fazer contra essas aberrações. Resta compartilhar da sua solidão, à espera de tempos melhores.


ABERRAÇÕES DE UM BIBLIOTECÁRIO     
Quando: estréia hoje, às 19h; de ter. a dom., às 19h e às 21h; até 6/8
Onde: Sesc Santana (av. Luiz Dumont Villares, 579, tel. 6971-8700)
Quanto: R$ 10


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