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Crítica/teatro
"Aberrações" desvenda a solidão e eleva ator à condição de boneco
SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Diante de sua biblioteca
imensa, garantia de
seu saber privilegiado,
o intelectual posa solenemente
para a posteridade. A imagem é
tão emblemática para o século
20 quanto foi para o 19 a foto da
família feita em estúdio -e,
muito em breve, igualmente
obsoleta.
Tanto maior é a nostalgia de
"Les Aberrations du Documentaliste" ("Aberrações de um Bibliotecário"), espetáculo que a
companhia do franco-argentino Ezéquiel Garcia-Romeu
apresentou com uma excelente
acolhida do público no Festival
Internacional de São José do
Rio Preto e que agora começa a
temporada no Sesc Santana.
Inserido no restrito universo
do teatro de bonecos para adultos, o diretor-manipulador eleva ainda mais a aposta ao limitar sua platéia. "La Méridienne", espetáculo da mesma companhia que teve já uma temporada relâmpago na cidade, era
radical: um boneco minúsculo
manipulado pelo diretor-cenógrafo expunha durante cinco
minutos "a fragilidade do pensamento humano diante do
tempo" para um único espectador, que em seguida era convidado a compartilhar suas impressões com o público que esperava ainda.
Nesta experiência, a solidão
ainda é o tema, embora o público seja um pouco menos restrito (são 38 por sessão), e novamente uma discreta interatividade procure sensibilizá-lo para uma profundidade essencial.
Conduzido por um labirinto
-a referência à Borges é imediata-, o público espia escondido os devaneios desse demiurgo do mundo das idéias,
pela transparência das coxias,
até poder sentar na platéia.
O bibliotecário é um ator.
Mas será mesmo? A precisão de
seus movimentos, o carisma de
sua fisionomia eleva Jacques
Fornier à condição de boneco,
na utopia de Gordon Craig -e o
espetáculo parece remeter diretamente ao revolucionário
encenador inglês, que passou
as últimas décadas de sua vida
recluso elaborando espetáculos de animação.
Um rápido arremesso de dados ameaça levar à erudição da
biblioteca do simbolista Mallarmé -mas nada haverá de
hermético no espetáculo. Pelo
contrário: a grande referência
do encenador é Fernando Pessoa, e logo tudo se banhará na
sábia puerilidade de Alberto
Caeiro, com o desassossego de
Bernardo Soares.
O tema de Deus diante de sua
criatura é de um fascínio incontornável para os manipuladores, e o espetáculo se filia pela
sua poesia densa, quase ritual,
ao grupo Contadores de Estórias de Paraty. Mas enquanto o
grupo de Marcos Caetano Ribas surge como deuses protetores de suas frágeis e desamparadas criaturas, Fornier não é
manipulador. Os bonecos que
brotam de sua mesa, como alucinações, animados habilmente por baixo pelo diretor e pelo
co-diretor e co-cenógrafo
François Tomsu, parecem ter
vida própria.
Uma vida efêmera e sem nexo, no entanto. Esses homúnsculos, como caricaturas derrisórias da humanidade, se autodestroem na disputa pelo mundo, sem que o criador possa fazer algo por eles. Uma alegoria
tão clara sobre os atuais tempos
de guerra, que qualquer tentativa de acrescentar sentidos leva inevitavelmente à diluição
da força do espetáculo.
O sono da razão produz
monstros, e não há nada que
um documentalista possa fazer
contra essas aberrações. Resta
compartilhar da sua solidão, à
espera de tempos melhores.
ABERRAÇÕES DE UM BIBLIOTECÁRIO
Quando: estréia hoje, às 19h; de ter. a
dom., às 19h e às 21h; até 6/8
Onde: Sesc Santana (av. Luiz Dumont
Villares, 579, tel. 6971-8700)
Quanto: R$ 10
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