São Paulo, quarta-feira, 28 de julho de 2010

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MARCELO COELHO

Pavores matemáticos


"Logicomix" faz quadrinhos da história menos "quadrinizável" de todas, a do filósofo Bertrand Russel


QUEM JÁ leu algum livro de Tintim sabe que o "jovem repórter" e seus amigos não enfrentam apenas a ameaça de quadrilhas internacionais e conspiradores de bigode preto. Maior que o de muitos malfeitores é o perigo da loucura.
Numa das histórias de Hergé, o capitão Haddock entra numa espécie de delírio alcoólico, pensa que Tintim é uma garrafa, e tenta arrancar sua cabeça como se fosse uma rolha de champanhe. O professor Girassol, em outra aventura, sofre os ataques de uma zarabatana; na ponta das flechas, os selvagens inocularam uma poção capaz de levá-lo à completa insensatez.
Não por acaso, os autores de "Logicomix", uma "graphic novel" de quase 350 páginas que acaba de ser traduzida pela editora Conrad, mencionam Hergé logo no começo do livro.
É de outro tipo de loucura, todavia, que trata o roteiro de Christos Papadimitriou, um especialista em ciência da computação, ilustrado no desenho minucioso e elegante de Alecos Papadatos (nome que poderia ter vindo diretamente das histórias de Tintim).
Com a ajuda de um matemático, Apostolos Doxiadis, os quadrinistas contam a história, talvez a menos "quadrinizável" de todas as possíveis, das angústias intelectuais do filósofo Bertrand Russell (1872-1970).
Criado num castelo pelos avós, religiosos e distantes, desde cedo o pequeno "Bertie" inquietou-se com o que se pode e o que não se pode saber. Por que temos de acreditar, por exemplo, na verdade de um axioma geométrico, como o de que linhas paralelas nunca se encontram?
Convenhamos que já existe boa dose de loucura quando se quer eliminar a dúvida sobre as coisas de que não se consegue duvidar. Mas não era só a matemática que tirava o sono de Russell. No meio da noite, o garoto ouve gritos animalescos, vindos de alguma parte secreta do castelo. Como num romance gótico, trafega em suas veias a carga hereditária do delírio.
É o próprio Russell quem narra, em retrospecto, suas inquietações. De alguma forma, conseguiu sobreviver a todas elas. O traço de Alecos Papadatos consegue captar com economia a expressão astuta e benevolente do filósofo, no auge da fama e da velhice.
"Logicomix" apresenta ao leitor, de modo rápido e compreensível, uma amostra dos problemas e dos pensadores com quem Bertrand Russell iria cruzar durante a vida.
Eis, por exemplo, o grande Georg Cantor (1845-1918), que recebe a visita de Russell, interessado em aperfeiçoar a teoria dos conjuntos. Com cara de pouquíssimos amigos, cercado de montanhas de papel, Cantor não quer discutir matemática com o colega britânico, e sim suas outras descobertas.
Por exemplo, a de que Jesus era filho de José de Arimateia. Uma enfermeira consternada observa o diálogo. Georg Cantor estava internado em um hospício. É puro Tintim, mas é pura história da matemática também.
Com barba de vassoura e sobrancelhas de porco-espinho, outro gênio, Gottlob Frege (1848-1925) recebe Russell aos berros. Está tomado de delírio antissemita. Mais adiante, surge um jovem para interpelar Russell com olhos alucinados, espasmos de dor e lógica assassina: é Ludwig Wittgenstein, cujas loucuras poderiam render uma saga em vários volumes.
A essa altura, o projeto de fundamentar a matemática, que Russell empreendera durante tanto tempo ao lado de Alfred North Whitehead, já ia por água abaixo. "Logicomix" mostra a quantidade imensa de esforços, tanto emocionais quanto intelectuais, empreendidos pela dupla para provar definitivamente por que é que um mais um é igual a dois.
Não que tenham conseguido, claro. Seja como for, o final de "Logicomix" não tem nada de infeliz. Aquilo que Russell chamou de seu "fracasso" talvez tenha sido simplesmente o rochedo que o livrou de perder-se num oceano sem fundo.
De minha parte, não me perturbam muito os frenesis, tão em voga atualmente, sobre a fragilidade do conhecimento científico. Basta alguém falar na impossibilidade de se determinar a posição de um elétron, não sei em que condições, para muita gente se convencer de que não há como determinar com clareza a posição dos próprios pés.
Mas não há motivos para esperar grande clareza num rochedo; não me importo se for opaco, desde que razoavelmente sólido. E, para que as coisas terminem bem, é preciso que comecem em algum ponto.

coelhofsp@uol.com.br

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Contardo Calligaris


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