São Paulo, quarta-feira, 28 de agosto de 2002

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MÚSICA

Rapper da Cidade de Deus lança CD sob nova controvérsia e diz que filme de Fernando Meirelles é preconceituoso

MV Bill volta a atacar hipocrisia social

ISRAEL DO VALE
EDITOR-ADJUNTO DA ILUSTRADA

Cena 1, dezembro de 2000: o clipe de "Soldado do Morro" (garotos empunhando armas pelos becos da favela carioca da Cidade de Deus) transporta o rapper carioca MV Bill do noticiário cultural para o policial. Apologia ao crime, dizia-se.
Cena 2, setembro de 2002: turbulência superada, Bill volta à carga em novo disco a partir do ponto em que parou. É o fim do armistício. O primeiro clipe da safra atual, para a faixa "Só Deus Pode me Julgar", atravessou momentos tensos em sua gravação, com intercessão da polícia no hospital em que as cenas de um parto foram registradas.
"Declaração de Guerra", o novo disco, abre mais um capítulo na saga do rapper "chapa-quente" da Cidade de Deus. E reafirma o pendor de Bill pela controvérsia. Inclemente, volta a mirar na hipocrisia social, no atacado, para acertar no incômodo individual (moral, político, de classe), no varejo. É um provocador nato. "Sinto que estou mais agressivo que no primeiro disco, mais questionador, mas meu discurso não é de exclusão, é de inclusão."
"Declaração de Guerra" enfileira 14 novos cutucões. Começa por "Soldado Morto", referência explícita a "Soldado do Morro"; termina com "Declaração de Guerra", uma saraivada de versos contra o discurso conciliador inócuo e o mito da democracia racial brasileira.
Com bases musicais centradas na black music brasileira (Hyldon, Djavan, samba-rock) e na apropriação de células da música "excluída" do mercado global (de latino-americanos a franceses), Bill recusa-se a continuar bebendo na matriz padrão do rap nacional, que vive escorado no soul e no funk norte-americanos.
"Só Deus Pode me Julgar", ponto alto (musical) do disco, recorre a arranjos de cordas -gravados em estúdio, por uma orquestra de 13 músicos. "Cidadão Comum Refém" o aproxima do rock, na dobradinha com Chorão do Charlie Brown Jr., única participação vocal de maior apelo -as outras são as rappers K-mila e Nega Gizza, sua irmã. Reza o refrão: "Quando o ódio dominar não vai sobrar ninguém/ o mal que você faz reflete em mim também".
A produção do CD estreita associações entre Bill, DJ Luciano, Rafa, Zé Gonzales e Daniel Ganja Man -os dois últimos, soldados do pelotão de frente no rap atual.

"Cidade de Deus"
Ao contrário de "Traficando Informação", o disco de estréia, totalmente contextualizado no universo da Cidade de Deus, este "Declarando Guerra" não faz menção à região, mote do longa-metragem de Fernando Meirelles que estréia na próxima sexta.
Bill reluta em comentar o filme, que reúne amigos como Paulo Lins (autor do livro que lhe serve de base) e Kátia Lund (co-diretora). Mas se assume como voz dissonante da recepção festiva, superlativa, disseminada até agora.
"Fiz uma pesquisa por aqui e existe uma aversão ao filme", reporta. Para Bill, o longa de Meirelles tende a disseminar medo e a estigmatizar os moradores, com a generalização da imagem de que favelado é bandido e de que favela é terra de ninguém. "Ele não traz nenhum benefício à Cidade de Deus", diz. "E mostra um certo preconceito sim, de que a favela é a grande causadora da violência nas grandes capitais", argumenta.


Ouça trechos da entrevista e da música "Só Deus Pode me Julgar" na Folha Online (Ilustrada Online)



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