São Paulo, sexta, 28 de agosto de 1998

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CINEMA ESTRÉIAS

'Hana-Bi' confronta a violência e o vazio

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Takeshi Kitano é um desses cada vez mais raros factótuns do cinema. Dirigiu, escreveu, montou e protagonizou "Hana-Bi". De passagem, ganhou o Festival de Veneza 98 e aplausos gerais da crítica européia e americana.
Estranha unanimidade para um filme difícil, cujo centro é a estruturação das sequências numa ordem que desobedece a organização linear, embora nem por isso busque a não-linearidade.
Sua história pode ser assim resumida: o policial Nishi deixa de participar de uma incursão aos redutos da Yakuza (a máfia japonesa) para visitar a mulher, que tem leucemia, em um hospital. Durante a batida, seu colega Horibe é baleado e torna-se paraplégico.
A partir daí, os destinos de Nishi e Horibe se confrontam. Enquanto o primeiro arrasta a dor da mulher à beira da morte e endivida-se com a Yakuza, Horibe sofre em uma cadeira de rodas. Isso até que Nishi decide assaltar um banco, para arranjar dinheiro para uma viagem com a mulher e acertar as contas com a Yakuza.
Como se trabalhasse pensando em Eisenstein, Kitano não desenvolve toda a ação. Sugere-a. Trabalha seus interstícios: quadros estáticos que se juntam como ideogramas. O próprio título é sintomático. "Hana-Bi" associa as idéias de flores (que Horibe pinta em sua solidão) e armas (que Nishi usa). Flores junto a armas terá o sentido de fogos de artifício.
A função do ideograma, retomada por Eisenstein no cinema mudo, é essa: duas imagens criam uma terceira, que sintetiza as anteriores, mas as ultrapassa.
O princípio, interessantíssimo, dá a Kitano um lugar original no cinema contemporâneo, o que não impede o espectador de sentir-se excluído (sobretudo no início) da narrativa e, portanto, de sua reflexão sobre dor e violência.
O filme ganha mais fôlego na segunda metade, quando Nishi organiza sua vingança contra a Yakuza e o mundo. Essa segunda metade poderia, no mais, ser vista como um sofisticadíssimo "Desejo de Matar" ou "O Passageiro da Chuva" (que era um "Desejo de Matar" metido a besta, estrelado pelo mesmo Charles Bronson).
Tudo o que em "Desejo" é um apelo à ordem quase fascista aqui se transfigura na necessidade de Nishi de viver e dar vida às pessoas amadas. Como, é claro, não possui esse dom, Nishi o ritualiza: os fogos de artifício surgem como expressões de um vazio. Nele, entra a ação não como resgate desse vazio -irresgatável-, mas como um movimento que, à falta de sentido, dá à existência sabor.
"Hana-Bi" é um filme por vezes estranho, por vezes familiar. Quando sua idéia consegue ser plenamente percebida, entusiasma. Em outros momentos, ameaça ficar enfadonho. Nunca vulgar.


Filme: Hana-Bi (Fogos de Artifício)
Produção: Japão, 1997
Direção: Takeshi Kitano
Com: Takeshi Kitano, Kayolo Kishimoto
Quando: a partir de hoje, no Espaço Unibanco de Cinema - sala 2




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