São Paulo, quinta-feira, 28 de setembro de 2000

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TEATRO
Sotigui Kouyate, que há 17 anos trabalha com Peter Brook, está na primeira montagem do diretor inglês no Brasil
Ator negro vê racismo no palco europeu

Lenise Pinheiro/Folha Imagem
O ator malinês Sotigui Kouyate, que está na montagem que Peter Brook fez para a peça "O Traje"


MARILENE FELINTO
ENVIADA ESPECIAL A PORTO ALEGRE

Um grupo de quatro atores negros, com diferentes sotaques estrangeiros, foi o grande destaque da 7ª edição do Porto Alegre Em Cena, o festival internacional de teatro da capital gaúcha que começou dia 16 e vai até domingo.
O africano Sotigui Kouyate, a canadense Tanya Moodie e os franceses Hubert Kounde e Cyril Guei compõem o elenco de "Le Costume" ("O Traje"), produção de 1999 dirigida por Peter Brook que teve sessões em Porto Alegre.
Essa foi a primeira apresentação de uma peça de Brook, 75, no Brasil. No domingo, a Folha falou com exclusividade com Kouyate, ator do Théâtre des Bouffes du Nord, a companhia de Brook.
Nascido no Mali, Kouyate, 64, trabalha há 17 anos com Brook. Foi dele o papel de Prospero na montagem do diretor para "A Tempestade", de Shakespeare.
Em "Le Costume", ele é Maphikela, narrador que introduz a história de adultério e vingança de um casal pobre na África do Sul, Matilda (Tanya Moodie) e Philemon (Hubert Kounde).
A peça é adaptada de conto do jornalista sul-africano Can Themba, que viveu nos anos 50 em Johannesburgo. A adaptação para o teatro é dos sul-africanos Mothobi Mutloatse e Barney Simon.
"O Traje" conta a história de Matilda, que trai seu marido Philemon todos os dias quando este sai para o trabalho. Certo dia, Philemon descobre o adultério e encontra o terno (o traje) que o amante esqueceu antes de fugir.
Daí por diante, para vingar-se da mulher e humilhá-la, Philemon transforma o terno num personagem real. A mulher deve tratá-lo como o amante, alimentá-lo, conversar com ele, sentar-se em seu colo, dançar com ele. Ironia, humor e música conduzem o enredo para um desfecho trágico.
Despojado de recursos cênicos, o espetáculo é um raro show de interpretação de atores. Leia abaixo trechos da entrevista.

Folha - Pode-se ver o elemento do terno numa dimensão maior? Uma metáfora do intruso branco na terra sul-africana, destruindo as estruturas da sociedade negra, o casal, a família?
Sotigui Kouyate -
No meu país costuma-se dizer que há três verdades: a tua verdade, a minha verdade e a verdade. O tema da peça é muito claro. Não é um problema entre brancos e negros. É uma história universal, que diz respeito a brancos, negros, amarelos etc. Há um casal, que nos leva ao tema masculino e feminino. Antes de denunciar, a peça sobretudo informa. Pode-se ver uma denúncia do que o branco fez na África do Sul. Ao informar algo, toca-se em algumas verdades. Por que aquela pobreza? As pessoas vivem ali um momento em que nada é fácil. Maphikela quer a liberdade de entrar numa loja e comprar a bebida que quiser. E o outro responde: isso não é liberdade. As pessoas não só não tinham direitos como também não tinham dinheiro. O outro diz que isso não é liberdade, que para ter liberdade é preciso independência intelectual. Isso não é dito na peça, está implícito.

Folha - Qual a situação dos atores negros na França hoje?
Kouyate -
Enfrentamos um problema que é mundial. Falo pelos negros, mas acho que os atores do Leste Europeu também não encontram trabalho por serem de lá. Os europeus precisam de atores estereotipados. Já trabalhei na Inglaterra, na Alemanha e, assim como no cinema francês, eles só utilizam o negro quando precisam de um personagem negro. Ao contrário dos EUA, onde muitos atores negros ocupam papéis principais não porque são negros, mas porque são atores.

Folha - Acontece o mesmo no teatro? E na companhia de Brook?
Kouyate -
No teatro, a exceção confirma a regra. Há companhias, como o Théâtre du Soleil, que derrubaram algumas barreiras e empregam muitos estrangeiros, mas ainda não negros.
Peter Brook é o único diretor na França para quem não há barreira entre os seres: não há negros, brancos, amarelos ou vermelhos, só atores. No "Mahabharata" havia 22 atores de 18 nacionalidades, iranianos, turcos, dinamarqueses, japoneses. Havia também cinco irmãos, filhos da mesma mãe francesa, mas um era italiano, outro negro, mais negro do que eu, outro alemão, outro francês e outro iraniano. Em "A Tempestade" eu fiz Prospero, o duque de Milão, que não era negro. Percorremos toda a Europa, inclusive a Inglaterra, com a peça e as pessoas não ficaram tocadas de ver um negro no papel. Para Brook, não há negros ou brancos, só o ser humano. Quando não houver mais isso no teatro, eu paro.
Se há uma voz universal de comunicação, ainda direta e presente, é a voz do teatro.


Marilene Felinto esteve em Porto Alegre a convite do festival. Colaborou Marcelo Krug (tradução)


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