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CINEMA/ESTRÉIAS
"OS AMANTES"
Volta ao cartaz polêmico filme de Louis Malle com Jeanne Moreau censurado no Brasil na década de 60
Personagem perde a vida por polidez
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
"Por polidez , perdi minha
vida": assim como Rimbaud, o autor do verso, a personagem de Jeanne Moreau em "Os
Amantes", a verdadeira "Madame Bovary" da nouvelle vague
francesa, trocou a "politesse" pelo
desconhecido e ganhou a vida.
Quando lançado no Brasil, nos
anos 60, "Os Amantes" (1958) foi
alvo de um processo criminal da
Confederação de Famílias Cristãs.
A censura gerou polêmica e mobilizou a imprensa, levando o crítico Paulo Emílio Salles Gomes a
escrever uma série de artigos desancando a atitude da confederação. Para destruir o argumento da
censura, Paulo Emílio demonstrava, em uma análise sucinta da
obra-prima de Louis Malle, que o
problema da protagonista não era
tanto sexual, mas social.
O problema era a "politesse"
francesa. Código de boa educação
que chegou a ser a mais alta expressão do estilo de vida da aristocracia francesa do século 18, a
"politesse" tornara-se sinônimo
de inautenticidade e afetação à
medida que ia sendo apropriada
pela burguesia.
Sufocada por toda a falsa polidez de sua vida burguesa, a heroína de Malle tomou a atitude que
todos julgaram surpreendente.
Paulo Emílio podia não se dar
conta, mas ele filiava assim a "Bovary" de Malle aos filmes de Renoir, especialmente "A Regra do
Jogo". Pois, se na primeira parte
de "Os Amantes", com o auxílio
da escritora Louise de Vilmorin e
sob o signo de seu casamento com
Moreau, Malle detinha-se friamente, ao estilo Flaubert, sobre os
hábitos burgueses que faziam o
dia-a-dia de sua protagonista, na
segunda, à maneira de Renoir, ele
fazia a personagem abandonar todos os papéis sociais que experimentara, o de esposa e o de amante, o de mãe e o de amiga, em nome do devir da vida.
Em Renoir, a imagem que melhor representa esse devir é o fluxo das águas de um rio. O fluxo de
"Boudu Salvo das Águas" e de
"Une Partie de Campagne". Os
personagens de Malle, como os de
Renoir, deixam-se levar pelo fluxo da vida num barco à deriva no
rio. Essa passagem do filme, inesquecível, é daqueles belos "movimentos de mundo" que Malle sabia criar: não são os personagens
que se movem aqui, mas toda a
natureza que parece conspirar a
favor dos enamorados, tomando
para si o movimento deles.
O grande legado que a geração
nouvelle vague herda de Renoir é
esse devir que elege o amor com
toda a sua vitalidade e amoralidade. A insensatez do amor é a fonte
de todos aqueles atos injustificáveis que marcam os primeiros filmes da nouvelle vague. Nesse sentido, a verdadeira influência literária da geração não era nem
Flaubert nem Balzac, mas André
Gide e seu inusitado conceito de
"ato gratuito".
O "ato gratuito" não é pautado
por preceitos éticos ou morais. É
um ato estético-hedonista pelo
qual o indivíduo afirma sua liberdade sem se prender, como na
perspectiva existencialista, a um
projeto de humanidade, a um
compromisso. O ato é como o riso
de Moreau diante do marido e do
amante: vida que irrompe, barbaramente, em sociedade, afirmando sua liberação do escrúpulo.
Um ato sem motivo nem fim.
Uma impossibilidade psicológica,
dirão alguns. Mas é preciso entender a liberdade dos personagens
da nouvelle vague como uma reação aos estereótipos psicológicos
do cinema clássico e, especialmente, àquela espécie de "politesse", que fazia a impostura da tradição do realismo psicológico do
cinema francês.
Os Amantes
Les Amants
Direção: Louis Malle
Produção: França, 1958
Com: Jeanne Moreau, Alain Cuny
Quando: a partir de hoje no Top Cine
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